Sem dúvida um clássico da Teologia do Antigo Testamento é a Teologia de Gerhard Von Rad (publicada entre 1957-1967). É uma leitura muito instrutiva e nos dá um bom panorama do Antigo Testamento. Não me dando por contente quando pesquisando sobre a temática da Justiça de Deus em dicionários teológicos fui para o bom e velho Von Rad. Na pesquisa eu sempre começo pelo mais fácil, dicionário teológico, Teologias mais recentes, como a do Schmidt, recursos adicionais da Bibleworks, daí então se recorre aos clássicos. Uma pena, porque dá para fazer boas descobertas relendo-os. É isto que quero compartilhar com você!
Pela primeira vez eu ouvi falar de Justiça sem fazer uso da tão falada “justiça forense”. A primeira questão que Von Rad aponta é que justiça é essencialmente um conceito relacional, entre dois seres, não se refere à relação entre uma idéia e um objeto(VON RAD, Teologia do Antigo Testamento, p.359-372). Exemplificando: Eu contrato alguém para fazer um serviço para mim, e combino pagar R$100 reais para ele. Porém na hora do pagamento eu lhe pago apenas R$50, pois achei que o serviço não foi tão bom. Neste caso eu sou injusto porque paguei menos? De acordo com o conceito de Von Rad não, eu sou injusto porque quebrei a confiança num relacionamento entre duas pessoas.
No pensamento moderno, eu seria considerado com alguém injusto por ter descumprido uma regra, uma idéia. O fato é que eu deveria pagar R$100, porém só paguei R$50. Fui injustoem relação à idéia consensual inicial (é um perfeito exemplo injustiça no conceito de retributivo aristotélico e também no conceito equitativo de John Rawls).
Pode parecer que dá na mesma, pois em ambos os casos estou sendo injusto, porém o fato é que um conceito relacional de justiça implica em um comprometimento pessoal com outrem. Enquanto que um conceito jurídico de justiça implica apenas em um comprometimento com um conceito ou idéia, que são abstratos. Não há espaço para amor, não há espaço para solidariedade. O que importa é o cumprimento ou descumprimento do conceito jurídico.
Num conceito de justiça relacional o que mais importa é manter-se fiel para com o meu semelhante, pensando aqui numa aplicação humanística do conceito. Se sou fiel com meu semelhante então não intentarei mal contra ele, antes buscarei ações afirmativas em benefício do nosso relacionamento. A justiça relacional pode até ser desigual, pois vai oferecer maiores benefícios para quem precisa mais, e menores benefícios para quem precisa menos (Talvez neste sentido a abordagem das capacitações de Amartya Sen nos ajude a ampliar horizontes). Justiça relacional pode não ser uma justiça equitativa (John Rawls), mas é um justiça de compromisso com o bem do outro. O alvo desta justiça não é a riqueza, o bem-estar, mas o Shalom (Is 32.17). A paz Shalom não é uma paz de espírito, nem uma paz como ausência de guerra. Shalom significa estar completo. Isto tanto no nível pessoal, como relacional com Deus e o meu semelhante. Não há Shalom interno! Não há Shalom onde há guerra, não há Shalom onde há fome e desigualdade, não há Shalom onde há famílias desestruturadas(Jr 6.14). Por isto Shalom também é um conceito realizável escatologicamente(Is 32.15; Jo 14.26-27). Porém, permanece o alvo e o fruto da justiça relacional.
A fidelidade, por sua vez, se mostra no conceito de solidariedade. Este conceito tem seu lugar vivencial na família, onde cada um é visto como irmão e irmã e onde, por exemplo, a cobrança de juros é proibida (Ex 22.25). Não se pode querer tirar lucro do seu irmão ou da sua irmã, pois as pessoas da família querem ajudar umas às outras sem receber algo em troca, por simples amor, por solidariedade. No nível estatal, o reino de Israel é reino de “irmãos e irmãs”, neste o rei é chamado a agir com imparcialidade. Este é o mesmo argumento de Lutero em seus escritos a respeito da economia. O Reformador utiliza o argumento filosófico da equidade (Rieth, R. (1995). Economia: Introdução ao Assunto In: OSel 5, p.367-373.). Entre dois extremos, deve-se escolher o mediano. Em assuntos econômicos, o rei de Israel deveria garantir a cada pessoa o que é justo, o que lhe cabe por direito por direito. Porém o rei deveria se colocar ao lado das pessoas pobres, das crianças órfãs e da viúva não por causa da solidariedade, mas por direito e justiça. É dever do rei dar a estas pessoas o que lhes cabe. O Rei deveria ser fiel às pessoas excluídas, pois são seus “irmãos e irmãs” na comunidade israelita (Cf. Kleine, M. (2009). “Solidariedade no Antigo Testamento. Três modelos e sua relevância para a Ética Cristã” In: Vox Scripturae 17:1, São Bento do Sul: FLT, p.27-40.).
A justificação, portanto, nos compromete com o próximo. Como uma família, nos comprometemos com a solidariedade, com a ação de amor em favor da pessoa necessitada, da pobre, da excluída e da que está sem condições para ter vida digna numa sociedade que objetiva a competitividade, o desempenho e o lucro. Diante de governos e autoridades, devemos clamar por equidade, direito e justiça, dando a cada pessoa o que é devido para que tenha acesso e possibilidade de uma vida digna.
Compreendemos que ser justo é ser fiel a Deus e à nossa comunidade em amor ao próximo, entendida não só num sentido de grupo eclesiástico, mas num sentido amplo, que engloba toda a pessoa humana, sem quaisquer distinções.