Máfia

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A praça de alimentação de um shopping é contaminada por aquele zum zum insuportável. É projetada pra ter aquele nível exato de barulho pra você ficar pouco tempo e comer muito rápido e ir embora. O shopping é pensado pra essa eficiência consumista, — compre logo e vá embora — o que torna ele um lugar insuportável, ao menos para alguns. Porém essa solução deixa de ser uma solução para a geração que cresceu com shopping centers e o consumismo sendo jogado na sua cara sem dó nem perdão. Pra esses uma praça de alimentação é um lugar perfeito pra matar tempo mesmo que a arquitetura local não foi pensada como o lugar ideal para ouvir o que o outro pode estar falando. Essa juventude, sempre atrapalhando o plano das gerações mais velhas.

 

— Ah, um charutinho agora. Um daqueles baianos baratinhos…

— Hum!?, responde Giorgio que acompanha com os olhos uma mulher de beleza hipnotizante que passeia pelo shopping.

 

Bodega não responde. Está jogado num daqueles sofás que pretendem deixar um ambiente comercial mais amigável, pra que as pessoas se sintam mais a vontade para gastar o dinheiro que não tem com coisas inúteis. Giorgio também não questiona, continua hipnotizado.

 

Bodega inquieto olha tudo a sua volta mas não para em nenhum momento. Rapaz de barba feita, sandálias e calça rasgada se movimenta como se nunca houvesse qualquer forma adequada de se portar em determinado lugar. Bodega é um desses caras que fica descalço se sentir vontade, não é uma daquelas pessoas que segue a etiqueta e se porta de maneira adequada. Giorgio carrega uma atitude parecida, mas é menos largado apesar da barba pra fazer. Roupas básica com algum tênis que sempre deve ter existido — aqueles que alguma marca sempre deve ter vendido —, observa todo mundo que passa torcendo pra que aquela mulher passe mais uma vez ali por perto.

 

— Cara, pra mim igreja é como máfia, tá ligado?

— Opa, continua aí.

 

Giorgio muda seu foco. Esqueceu da mulher pra focar na tese do amigo. Bodega continua:

 

— Tá ligado como funciona a máfia? Chega uma colônia de estrangeiros, num centro urbano e tal; eles não conhecem ninguém, tudo é estranho pra eles, a língua é diferente, tudo parece meio errado, fora dos quadros e, sabe como é, sempre pode ter alguém querendo se dar bem em cima deles, tá todo mundo com medo e a coisa toda, do lugar novo, das pessoas novas e assim vai. Aí tem aqueles fortões, o típico valentão malandro que tem alguma influência na colônia e bate de porta em porta oferecendo proteção. Todo mundo aceita, afinal tá todo mundo se cagando porque ninguém tem ideia do que o povo dessa nova terra é capaz de fazer. Como tudo nessa vida, esses favores tem um preço, obviamente. É tudo em troca duma pequena quantia de dinheiro.

— E aí, e a igreja?

— Bem, do que uma igreja protege seus fiéis? Do inferno. Como você faz pra não ir pro inferno? Paga uma quantia, aparece aqui de vez em quando, veste do jeito que a gente fala que é certo, consume a cultura que a gente produz e, se você se comportar conforme nossa música, nós teremos o prazer de não te mandar pro inferno.

— E a máfia?

— Os pastores e presbíteros são os valentões. A colônia é todo esse povo com medo de ter que passar o resto da eternidade passando calor com o diabo. Saca? É tenso, velho. — e Bodega solta um sorriso cínico e convicto.

— Mas ninguém vai cobrar a dívida se você não pagar a devida contribuição ou parar de ir na igreja. Tipo, nenhuma igreja manda os presbíteros pra dar uma sova no seu José que faz dois meses não vai na igreja, não usa mais gravata e até ouve forró (e não é o forró gospel, não, é forró de qualidade que seu José é desenrolado!).

— É verdade. Mas eles fazem pior. Se você não fizer o que eu e a igreja dissermos pra você, você simplesmente vai morrer e ir pro inferno. Não que o nosso céu seja um lugar muito massa, afinal não dá pra ouvir rock, quando pode fazer sexo, o sexo é moderado, nada de bebida e a gente sempre usa saia abaixo do joelho e calça comprida. Mas o inferno, cara, o inferno é muito pior. É lá que mora o diabo, saca? Aquele carinha que vive de atazanar todo mundo, um versão muito piorada e cruel do saci pererê. É pra lá que você quer ir depois da morte?

— Saquei… A diferença da máfia é que ela atua na vida, enquanto a igreja é terrorista post mortem.

— Isso. A igreja são esses valentões que te protegem do inferno. Você paga uma taxa porque, supostamente, esses caras tem peito pra enfrentar todas as coisas que nós, colonos medrosos, não temos coragem de enfrentar. Só que, aqui entra a jogada, bem na real os valentões não tem muito trabalho, eles fazem pouca coisa, afinal dificilmente algo de ruim, ou diabólico, vai acontecer com você. Qualquer problema que aconteceu na tua vida vai ser ou porque você deu bobeira, o casa do máfia, ou por falta de fé, na igreja e tal. A culpa é sempre sua. Essa proteção é uma ilusão. Você paga porque te convenceram que o diabo não só pode como vai te atacar. Te convenceram que é tudo muito perigoso e algo mau pode acontecer. Só que nem a nata da máfia acredita que algo vá te atacar, tipo, eles sabem que não vai acontecer nada, nada mesmo. A cidade é tranquila, o diabo não existe, tudo vai dar certo. Tanto que quando acontece o que eles fazem? Saem atirando como se não houvesse amanhã, matam todo mundo cometendo uma burrice sem tamanho. Nem eles acreditam que inferno vai vim e daí quando ele vem eles fazem as cagadas que fazem, tentam contornar a situação, fogem da raia, jogam a culpa em outra pessoas e assim vai.

— Mas e os profetas?

— Que profetas?

— Sempre chega um mensageiro, sei lá, um colono se rebela… Algum desses caras que tem um momento de lucidez e começa a perguntar as coisas. Tipo um curioso meio inocente, saca? Aquele cara que quer ajudar a situação, quer melhorar a vida das pessoas e vai tentar ajudar os valentões a serem mais eficientes na sua proposta (que é outra, né? O profeta quer mudar o mundo, a máfia só quer garantir o cash).

— É simples. Quando chega um profeta, eles vão com o inferno pra cima do cara: falam das roupas, que isso não é jeito de falar, que o cara tá atentando a ordem e todas essas besteiras. Transforma essa voz da verdade em porta-voz do diabo. O inferno é burro, tem poucos recursos, mas os colonos não são lá muito inteligentes, afinal eles foram criados pela máfia, né? O inferno não tem poder pra acabar com o céu, daí ou eles descreditam o rebelde a tempo ou, se começar uma guerra porque o colono conseguiu levar essa lucidez pra mais gente, eles matam o profeta. Expulsam e magoam o cara de um jeito que ele nunca mais volta pra colônia ou pra igreja.

— Claro, né? O que mais dá pra fazer.

— Bem dessa. Acabam com o profeta e restabelecem o inferno. Com perdas obviamente.

— Pois toda a guerra tem mortos…

— Dos dois lados…

— Dos dois lados. Bem, não se a gente contar que um dos lados tem a eternidade pela frente.

— É. Mas aí não tem quem ganhe, né?

— Pois é, aí é até injusto.

 

 

Kyrie eleison

A imagem que ilustra esse post se chama Mafia Ganster Collage e não consegui encontrar o nome do artista.

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