Abuso Espiritual

Tempos atrás li um texto com o mesmo título no livro Meditatio, de Osmar Ludovico e me identifiquei nele. Algumas coisas pareciam coisas que eu tinha compartilhado com o autor. Mas vamos lá…

Parece uma heresia dizer isso, mas o abuso espiritual é tão comum na igreja que acabou se cauterizando no pensamento dos fiéis que transitam pelos corredores e templos por esse Brasilzão afora.

Abuso espiritual ocorre quando um líder utiliza sua prerrogativa de “autoridade espiritual” para, em nome de Deus, controlar e ferir seus liderados.

Minha experiência nisso provêm de anos entre denominações tradicionais e neopentecostais e como o Ludovico, listo algumas situações que vivi e vi com esses olhos que a terra há de comer:

  • Numa igreja de grande porte, a centralização de poder na mão de duas ou mais pessoas impede o acesso às informações sobre as entradas financeiras e a aplicação na Obra. Os membros não têm acesso nem poder de decisão em relação à contabilidade da igreja. É o pastor quem determina o próprio salário e mais os benefícios que incluem casa, carro, escola das crianças, almoços etc. Objetos pessoais, como carros e sapatos para a primeira dama, são adquiridos, na maioria das vezes através do caixa da igreja e não do salário que o líder recebe. Enquanto na maioria das igrejas pequenas a mulher do líder, pastor, está diretamente trabalhando nos muitos afazeres que envolvem a obre da igreja, na igreja de grande porte essa mesma figura de poder possui uma equipe para isso. Dando tempo para massagens durante o “expediente”, tendo ainda remuneração tanto quanto o seu marido. Benefícios determinados por eles mesmos, sem o conhecimento e parecer de um conselho são frequentes. Quando há conselho nessa igreja, os membros estão tão doutrinados que seu pensamento acaba se alinhando a esse tipo de conduta.
  • Outros caso, e esse é do livro… “um homem de aproximadamente quarenta anos se converte e começa a se integrar na igreja. Um dia, um grupo se encontra em sua casa para uma reunião de oração e alguns se sentem oprimidos no local. Descobrem que o homem tem uma coleção de discos de música popular brasileira. Olhos inquisidores percebem obras de Dorival Caymmi e Vinícius de Morais, e convencem o novo convertido a queimar toda a sua coleção.” … isso aconteceu comigo também, fui convencido de que estava fazendo a coisa certa e queimei CDs muitos bons, além da coleção do gibis que tinha e que hoje valeriam uma grana muito legal.

Conheci pessoas que, para se entregar ao trabalho na “igreja”, abdicaram de seus negócios, sua estrutura patrimonial e depois foram abandonados, quando não tinham mais utilidade. Ainda saíram acusados de rebelião e outras coisas. Pessoas íntegras colocadas em situação de vexame, perdendo “irmãos” de denominação na sequencia.

Situações de pessoas que fizeram coisas acreditando que estavam cumprindo um mandamento de Deus revelado através de “profecias”, a partir de alguém que estava orando e “sentiu” que deveria dizer algo da parte de Deus e que depois, revelou-se não ser nada além de um devaneio religioso e inconsequente…

Entre outros casos que poderia relata, mas que ficaria muito extenso…

Líderes com perfil autoritário e inquestionável, controladores de massas, centralizadores e com grande capacidade de sedução e persuasão. Certa ocasião estava num culto onde o responsável pelo som da igreja, alguém voluntário acreditando que fazia as coisas para Deus, faltou. Então outra pessoa quis ajudar, tomando o seu lugar, mas não tinha tanta experiência assim. Houve um problema no vídeo que o líder queria apresentar e acabou demorando mais que o normal… esse líder sentou na escada do púlpito… e com tom irônico, disse algo sobre esperar até que alguém competente fosse resolver o problema. O povo então riu, como macacos de auditório e depois daquele dia, a pessoa e a sua família deixaram a igreja.

Esse líder humilha e desqualifica seus liderados em público. Não tem amigos e se cerca de pessoas absolutamente leais que o obedecem cegamente.

Quando deixamos aquela igreja sabia que estava fazendo a coisa mais sensata a ser feita.

Fomos então para outra que, no começo demonstrou ser um lugar diferente, melhor, onde as pessoas realmente se importavam umas com as outras. Mas não demorou muito para começar a perceber que tudo era muito igual ao antigo lugar de onde vínhamos.

Fomos para uma célula onde fomos bem acolhidos, mas desde que não houvesse questionamentos da minha parte… logo depois já era tido como aquele rebelde, que não submetia às “minhas autoridades”, simplesmente porque apontava para coisas que aconteciam sem respaldo bíblico. Sem Deus.

Fomos deixados de lado, saímos da igreja e nunca fomos procurados para saber o motivo da saída.

Recentemente soubemos de um caso numa igreja que não conheço onde a família foi tão doutrinada que a liderança exerce tanta influência que chegaram a proibir o contato com pais, irmãos, amigos… deixaram de ter celular, internet

Mas também existe a parte mais fraca desse assunto. Pessoas que se submetem cegamente a abusos, que não tem discernimento para contestar os devaneios e equívocos da autoridade pastoral. O Osmar Ludovico vai chamá-los de “homens e mulheres inseguros, sem autoestima, que tendem a admirar seus líderes de forma exagerada e sem censura.

São ingênuos e infantis diante da realidade da vida, dependentes de conselhos para tomarem decisões. Geralmente são pessoas com problemas de relacionamento familiar, carentes de atenção. A religião ocupa quase a totalidade de seu tempo e sua energia, o que leva à espiritualização da existência”.

Eu consegui romper com esse modelo hipócrita, mas custou muita ira, revolta e dor no começo. O bom é que isso passa, cauteriza e você começa a enxergar novamente com os seus olhos.

Mas isso não acontece com todo mundo e deixa pra trás uma massa de fiéis completamente dependentes de elos físicos com Deus, como se eles mesmos não conseguissem fazer essa ligação. Não tomam consciência do abuso espiritual e se fecham muitas vezes em suas frustrações, calados.

É hora de mudar esse jogo e procurar ajuda. Enquanto isso não for detectado e revelado a todos, tanto o abusado quando os abusadores não terão cura.

Finalizando, vi um texto interessante dias atrás e que replico aqui para consolidar minhas palavras.

7 características das igrejas que cometem abuso espiritual

1) Scripture Twisting (Distorção da Escritura): para defender os abusos usam de doutrinas do tipo “cobertura espiritual”, distorcem o sentido bíblico da autoridade e submissão, etc. Encontram justificativas para qualquer coisa. Estes grupos geralmente são fundamentalistas e superficiais em seu conhecimento bíblico.

O que o líder ensina é aceito sem muito questionamento e nem é verificado nas Escrituras se as coisas são mesmo assim, ao contrario do bom exemplo dos bereanos que examinavam tudo o que Paulo lhes dizia.

2) Autocratic Leadership (liderança autocrática): discordar do líder é discordar de Deus. É pregado que devemos obedecer ao ditador, digo discipulador, mesmo que este esteja errado. Um dos “bispos” e uma igreja diz que se jogaria na frente de um trem caso o “apóstolo” ordenasse, pois Deus faria um milagre para salvá-lo ou a hora dele tinha chegado. A hierarquia é em forma de pirâmide (às vezes citam o salmo 133 como base), e geralmente bastante rígida. Em muitos casos não é permitido chamar alguém com cargo importante pelo nome, (seria uma desonra) mas sim pelo cargo que ocupa, como por exemplo “pastor Fulano”, “bispo X”, “apostolo Y”, etc. Alguns afirmam crer em “teocracia” e se inspiram nos líderes do Antigo Testamento. Dizem que democracia é do demônio, até no nome.

3) Isolationism (Isolacionismo): o grupo possui um sentimento de superioridade. Acredita que possui a melhor revelação de Deus, a melhor visão, a melhor estratégia. Eu percebi que a relação com outros ministérios se da com o objetivo de divulgar a marca (nome da denominação), para levar avivamento para os outros ou para arranjar publico para eventos. O relacionamento com outros ministérios é desencorajado quando não proibido. Em alguns grupos no louvor são tocadas apenas músicas do próprio ministério.

4) Spiritual Elitism (Elitismo espiritual): é passada a ideia de que quanto maior o nível que uma pessoa se encontra na hierarquia da denominação, mais esta pessoa é espiritual, tem maior intimidade com Deus, conhece mais a Bíblia, e até que possui mais poder espiritual (unção).

Isso leva à busca por cargos. Quem esta em maior nível pode mandar em quem estão abaixo. Em algumas igrejas o número de discípulos ou de células é indicativo de espiritualidade. Em algumas igrejas existem camisetas para diferenciar aqueles que são discípulos do pastor. Quanto maior o serviço demonstrado à denominação, ou quanto maior a bajulação, mais rápida é a subida na hierarquia.

5) Regimentation of Life (controle da vida): quando os líderes, especialmente em grupos com discipulado, se metem em áreas particulares da vida das pessoas. Controlam com quem podem namorar, se podem ou não ir para a praia, se deve ou não se mudar, roupas que podem vestir, etc. É controlada inclusive a presença nos cultos. Faltar em algum evento por motivos profissionais ou familiares é um pecado grave. Um pastor, discípulo direto do líder de uma denominação, chegou a oferecer atestados médicos falsos para que as pessoas pudessem participar de um evento, e meu amigo perdeu o emprego por discordar dessa imoralidade.

6) Disallowance of Dissent (rejeição de discordâncias): não existe espaço para o debate teológico. A interpretação seguida é a dos lideres. É praticamente a doutrina da infalibilidade papal. Qualquer critica é sinônimo de rebeldia, insubmissão, etc. Este é considerado um dos pecados mais graves. Outros pecados morais não recebem tal tratamento. Eu mesmo precisei ouvir xingamentos por mais de duas horas por discordar de posicionamentos políticos da denominação na qual congregava. Quem pensa diferente é convidado a se retirar. As denominações publicam as posições oficiais, que são consideradas, obviamente, as mais fiéis ao original. Os dogmas são sagrados.

7) Traumatic Departure (saída traumática): quem se desliga de um grupo destes geralmente sofre com acusações de rebeldia, de falta de visão, egoísmo, preguiça, comodismo, etc. Os que permanecem no grupo são instruídos a evitar influências dos rebeldes, que são desmoralizados. Os desligamentos são tratados como uma limpeza que Deus fez, para provar quem é fiel ao sistema. Não compreendem como alguém pode decidir se desligar de algo que consideram ser visão de Deus. Assim, se desligar de um grupo destes é equivalente a se rebelar contra o chamado de Deus. Muitas vezes relacionamentos são cortados e até famílias são prejudicadas apenas pelo fato de alguém não querer mais fazer parte do mesmo grupo ditatorial.

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Ronald M. Enroth, americano, sociólogo da religião, que escreveu um livro a respeito do abuso espiritual (Churches that abuse), após horas e mais horas de depoimentos de ex-membros de grupos religiosos dos EUA 

 

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