Dorothy Day nasceu no Brooklyn, em Nova Iorque, a 8 de novembro de 1897, no seio de uma família nominalmente protestante. Seu pai era um jornalista do Tennessee, escrevia romances e aventuras sobre esportes e amenizava seus artigos com citações de Shakespeare e da Bíblia.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial começou a se interessar pela realidade social. Devorou as descrições da miséria narradas por Jack London, assim como várias teorias anarquistas. Com uma bolsa dada por uma fundação de diretores de jornais pôde começar a estudar na universidade de Illinois — tinha então apenas dezesseis anos —, e ao mesmo tempo ingressava no Partido Socialista da América. Depois de 2 anos, Dorothy sai da universidade e, ao encontrar resistência por parte de seu pai ao voltar para casa, instala-se no bairro judeu Eastside e se torna jornalista, colaborando no jornal socialista Call (Voz). Escrevia sobre manifestações, intervenções brutais da polícia, comícios de greve e atividades pacifistas.
Teve pouco a ver com a ditadura do proletariado. As ideias anarquistas a fascinavam. Repugnava o Estado moderno, que chamava “Estado de escravos”; em seu lugar, prefere que o estado seja administrado por cada um, que todos participem na propriedade dos meios de produção com a devida responsabilidade. Propunha uma variedade de organismos descentralizados e autônomos. Manifestou-se, em Washington, com um grupo de feministas que haviam convocado uma greve. A polícia prendeu trinta manifestantes, entre eles Dorothy.
Em 1918, o último ano da guerra, tornou-se enfermeira. Tornou-se repórter de causas jurídicas, praticava a especulação em um restaurante e posava como modelo para estudantes de arte. Enquanto isso, casou-se com Forster Butterman — um homem de boas ideias, radicais — e teve com ele uma filha, Tamar; logo o abandonou. Nestes anos, Dorothy experimenta uma profunda conversão ao catolicismo, vendo na Igreja Católica um corpo vivo que sobreviveu por séculos. Produto desta conversão será sua separação de Forster, o homem de sua vida, e o batismo pelo rito católico.
[youtube http://www.youtube.com/watch?v=MDPHWTWwHkA]
Em 1933 conhece a Peter Maurin, pessoa essencial para a evolução de seu pensamento. Juntos, numa data tão significativa como o 1º. de maio de 1933, Dia do Trabalho, lançaram o primeiro número do Catholic Worker (O Trabalhador Católico). O jornal custava um centavo de dólar, continha relatos de greves, análises, trabalho infantil, greve dos agricultores, descrevia as péssimas condições salariais dos negros, artigos de leitura fácil e dezenas de mensagens sobre uma sociedade onde os homens estão à vontade. O Catholic Worker, com seu entusiasmo e linguagem clara caiu como uma bomba. Foram impressos 2.500 exemplares do primeiro número mas no final do ano vendiam-se 100 mil, subindo para 150 mil em 1936…
Quando tinha 65 anos, Dorothy Day viajou a Cuba para buscar os pontos de contato com os frutos da revolução socialista. Mostra abertamente sua simpatia por Fidel Castro. Aos 74 anos viajou a Moscou, onde encontrou algumas coisas interessantes, mas sem chegar a travar amizade com o verdadeiro socialismo russo. Ao cumprir 80 anos, recebeu a felicitação do Papa; naqueles anos levava uma vida tranquila em Nova Iorque. No dia 29 de novembro de 1980, aos 83 anos, morre vítima de câncer. O Papa João Paulo II a declarou Serva de Deus em 1996.
Dorothy Day é, possivelmente, a figura mais importante do catolicismo norte-americano do século vinte, ainda que não seja muito conhecida. Sua vida compartilhada com os pobres e seu compromisso com a não-violência ativa a fizeram ganhar tanto críticas como elogios. Sempre fiel à Igreja e contundente contra o capitalismo, nem todos os católicos americanos a compreenderam ou compartilharam sua posição. Mulher leiga, mãe, avó, trabalhadora, revolucionária e profundamente religiosa, Dorothy oferece um modelo de vida para estes primeiros anos do século 21. Sentia-se bem em ambientes socialistas, anarquistas e pacifistas, nos quais ganhou credibilidade devido ao seu compromisso cotidiano com os pobres e sua atitude profética até o final da vida. Falecida em 1980, foi declarada oficialmente como Serva de Deus e seu processo de canonização segue adiante. Fundadora do movimento anarquista católico em 1933, e líder carismática do mesmo durante quase 50 anos, alguns se surpreenderam que o Catholic Worker se mantivesse vivo e com vigor crescente depois de sua morte. O extraordinário de Dorothy Day não foi o que escreveu nem o que cria mas o fato de que não havia diferença alguma entre o que cria, o que dizia e escrevia e sua maneira de viver.
Mas Dorothy Day não chegou pacificamente ao compromisso sócio-político a partir de sua fé cristã. Ao contrário, a experiência religiosa foi algo que ela descobriu progressivamente e que só conseguiu integrar depois de anos de lutas internas e externas — Dorothy nasceu no seio de uma família trabalhadora e pouco religiosa. As tendências anticlericais de seu pai prevaleciam sobre a tênue religiosidade anglicana de sua mãe, e só no começo da adolescência Dorothy teve algum contato com a igreja. Durante a sua juventude, movia-se em ambientes progressistas, boêmios e seculares. Suas inquietações, suas amizades e o entorno no qual vivia lhe conduziram por rumos distantes do eclesial.
- OLHAR O MUNDO A PARTIR DOS POBRES
A chave da não-violência revolucionária de Dorothy Day está no que podemos chamar seu descenso radical e sem retorno ao mundo dos pobres. Dorothy é, ao mesmo tempo, uma reformadora social, uma ativista política e uma líder espiritual. Na sequência, veremos como está síntese se expressa no seu modo de olhar a vida e a história, em sua maneira de perceber e experimentar a realidade, em seu descobrimento de Jesus Cristo no meio da cidade. Dito de outro modo, sua síntese fé-justiça se plasma em três práticas concretas de descenso com consequências revolucionárias: abrir os olhos na ação pela justiça, incorporar-se à vida dos pobres e fazer-se carne (fragilidade) na vida pública, na prisão, na rua.
1. Do conflito à síntese
A vida de Dorothy Day pode ser vista como o desdobramento de uma síntese profunda que ela foi descobrindo e encarnando, uma síntese entre fé e justiça, tradição e revolução, religião e política. Nas primeiras etapas de sua vida, estes aspectos pareciam pólos opostos, como oposições inevitáveis. Mas olhemos mais detalhadamente este ponto, a partir de seus próprios escritos autobiográficos, para ver que evolução se produz com o passar dos anos.
Ainda nos tempos de bacharelado, com apenas 15 anos, escreveu que “desejava, ainda que não soubesse na época, uma síntese” (1). Alguns meses mais tarde, depois de se filiar ao partido socialista da Universidade de Illinois e de ler os grandes romancistas russos como Dostoiévski ou Tolstói, se deu conta de que “estava surgindo um grande conflito dentro de mim” (The Long Loneliness [La Larga Soledad, 50]), um conflito entre a religião e as novas realidades que ia descobrindo. “Sentia que minha fé não tinha nada a ver com a dos cristãos ao meu redor” (LS, 52).
No final da segunda parte de sua autobiografia, intitulada “Tempo de Busca”, descobre que “a grande massa dos pobres e trabalhadores eram os católicos neste país; e isto foi o que me levou à Igreja” (LS, 118) e o que lhe ajudou a integrar o conflito com uma nova, ainda que ainda frágil, síntese. Em 1926, escreveu que “estava convencida de que me tornaria católica; de qualquer modo, sentia que estava traindo a classe a que pertencia, os trabalhadores, os pobres do mundo, aqueles com os quais Cristo passou sua vida” (LS, 155). Esta luta não se acabou, obviamente, com a incorporação à Igreja. Vive em tensão entre sua convicção de que a Igreja é a Igreja dos pobres e os escândalos que vê nela. “Há muita caridade mas muito pouca justiça” (LS, 161). E coloca no papel seus sentimentos mais profundos: “Como desejo fazer uma síntese que reconcilie corpo e alma, este mundo e o vindouro (…) Não é estranho que tivera um conflito tão forte em minha mente e em meu coração” (LS, 162). Em meio a esta situação, viaja à Washington DC como jornalista para cobrir a Marcha contra a Fome, liderada pelos comunistas, e ali se produz o que, em minha opinião, é o episódio mais significativo frente à resolução desse conflito e na direção do descobrimento da nova síntese.
Esta passagem é narrada ao final da segunda parte de La Larga Soledad e descreve um período de profunda busca pessoal, aos trinta e cinco anos. Dorothy se refere a uma mescla de sentimentos de alegria, orgulho, amargura, egocentrismo e pecado. Se pergunta sobre “onde estava a liderança católica na tarefa de reunir homens e mulheres” (LS, 177). Neste contexto concreto, entrou em uma igreja e ali ofereceu “uma oração especial, uma oração acompanhada de lágrimas e angústia, pedindo encontrar a maneira de usar meus talentos a favor de meus companheiros trabalhadores, dos pobres” (LS, 178). Quarenta anos mais tarde, recorda: “Hoje é nosso aniversário. Em 1932, no santuário de Washington, rezei à Virgem Mãe para que mostrasse um modo de trabalhar a favor da revolução! Quando voltei a Nova Iorque, Peter Maurin estava me esperando” (2). Peter também andava buscando “uma nova síntese” (LS, 182) e finalmente esta se realizou no Catholic Worker. Levando em conta o dinamismo narrativo de La Larga Soledad, as consequências práticas que se derivaram desta oração e o próprio testemunho pessoal de Dorothy Day, parece claro que este episódio foi o ponto de inflexão em sua busca de uma síntese. Como Dorothy Day articulou esta nova síntese? Dado que não era uma teóloga nem uma grande intelectual, o que fez foi simplesmente utilizar as noções comuns de sua época; mas as fez suas de uma maneira criativa, explorando, utilizando e encarnando as consequências implícitas em tais doutrinas. Foi capaz de retomar doutrinas tradicionais, de assimilá-las de uma maneira profundamente pessoal segundo seu próprio caráter, e de radicalizá-las a partir da proximidade cotidiana aos pobres. Por isso se pode dizer que a síntese de sua vida teve uma articulação teológica implícita, que décadas mais tarde se nomeou como o binômio fé-justiça.
2. Abrir os olhos até desgarrá-los
Dorothy Day foi, desde jovem, uma mulher atenta à vida, nos seus matizes e detalhes. La Larga Soledad nos permite seguir sua trajetória a este respeito, descobrindo que sua espiritualidade se apóia em sua própria personalidade, seu caráter, seu estilo, suas virtudes e limitações. A conversão religiosa de Dorothy (como em toda pessoa) se constrói a partir de sua própria humanidade, ainda que obviamente fica transformada pela graça.
Quando tinha apenas quinze anos escreve a uma amiga do colégio: “Como gosto do parque no inverno! Tão solitário e assombroso, no sentido mais verdadeiro da palavra. Deus está aí. Obviamente, Ele está em todas as partes, mas debaixo das árvores e olhando através da expansão ampla do lago Ele se comunica pessoalmente comigo e me enche com uma profunda paz tranquila” (LS, 42). Não é de se estranhar que, anos mais tarde, em 1962, conclua: “me parece que sempre tive um sentido espiritual imanente do mundo” (AIG, 62).
Quando tinha dezessete anos e ainda vivia em Chicago, experimentou um processo de aprendizagem que podemos chamar de “misticismo social”. Em um delicioso relato, conta de que maneira sua “leitura começou a ter consciência social” (LS, 45), como aprendeu de Carl Sandberg “a olhar as pessoas tal e como ele o fazia, com amor e esperança de grande compromisso” (LS, 45). Este despertar inclui o aprender a caminhar de uma nova maneira e em uma nova direção: “Quando li La Jungla de Upton Sinclair comecei a dar largos passos na direção de West Side mais que dirigir-me até o parque ou ao lago” (LS, 46). Há um novo significado no cheiro: “colecionava odores em minha memória, a única beleza naquelas ruas cinzentas” (LS, 46). Escuta de maneira diferente as diferentes vozes e músicas que “tocam também nas cordas do meu coração” (LS, 46). Graças a esta maneira de ler, olhar, caminhar, cheirar e escutar acaba reconhecendo: “Recebi um chamado, uma vocação, uma direção para minha vida” (LS, 47). É a direção do descenso radical na direção dos pobres, na qual anos mais tarde encontrará sua vocação cristã.
Uma das primeiras coisas das quais se apercebeu quando chegou a Nova Iorque em 1917 foi que “o silêncio em meio aos ruídos das cidades me oprimia” e que “a pobreza em Nova Iorque era espantosamente diferente da de Chicago. Os mesmos odores eram muito distintos. (…) É um odor como não há outro no mundo, a que alguém não se acaba por se acostumar” (LS 60). Alguns anos mais tarde, quando Dorothy Day participou com as sufragistas nas manifestações de Washington, recorda que “havia um sabor religioso nas marchas silenciosas” (LS, 82), ainda que as participantes fossem em sua maioria não-crentes. Com razão se ressaltou que Dorothy Day se destaca desde jovem por sua sensibilidade aos detalhes inadvertidos da vida, uma sensibilidade que se mantém e se agudiza ao largo de toda sua vida.
Outro acontecimento que aprofunda sua capacidade para a contemplação ocurreu em 1925. Tinha 28 anos e estava grávida, tinha ido viver em Staten Island e, segundo ela mesma confessa, estava aprendendo a respirar de outra maneira: “Se respirar é a vida, então estava começando a estar cheia de vida graças a ele [Forster, seu marido]” (LS, 146). Em algumas ocasiões se refere a este momento como “a experiência da praia,” e anos depois escreveu em seu diário pessoal: “nasci de novo pela palavra do Espírito, contemplando a beleza do mar e da praia, do vento e das ondas, das marés. O sublime e o insignificante, as tormentas e a paz, as ondas e marolas da maré baixa, as gaivotas, algas e conchas, tudo dava testemunho do Criador, Pai todo poderoso, revelado a nós graças a Seu Filho” (AIG, 62). Ao largo de sua vida e de suas obras, há vários exemplos que mostram a agudeza de sua receptividade pessoal, social e espiritual para com a vida de Deus no mundo. Sua localização social entre os pobres proporcionará uma maneira particular de ver a realidade que aprofunda e radicaliza esta disposição natural a captar e valorizar os detalhes da vida cotidiana (3). Por isso, podemos dizer que uma das características principais da espiritualidade de Dorothy Day é o que o pai da teologia política, Metz, chamou de uma “mística de olhos abertos”, ou o que na tradição ignaciana se chama “buscar e achar a Deus em todas as coisas”, ou ser contemplativos na ação.
3. Experimentar a realidade incorporada aos pobres
Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, Dorothy Day foi duramente criticada pela posição pacifista de Catholic Worker. Muita gente lhes acusou de ter medo do sofrimento e das privações da guerra. Sua resposta oferece algumas chaves do que quer dizer o descenso radical cotidiano que já mencionamos:
“Deixemos que os que falam de suavidade e sentimentalismo venham viver conosco nas casas frias e sem aquecimento dos subúrbios. Deixemos que eles venham viver com os criminosos, enfermos, bêbados, degradados, pervertidos (não eram os pobres decentes nem os pecadores decentes os receptores do amor de Cristo). Deixemos que eles venham viver con os ratos, bichos, percevejos, baratas, piolhos (poderia descrever muitos tipos de piolhos do corpo). Deixemos que sua pele se congele de frio, se apodreça pela sujeira, pelos bichos; deixemos que seus olhos se mortifiquem ao ver excrementos humanos, membros (olhos, narizes, bocas) mutilados.” (4)
No mesmo artigo, continua descrevendo as condições de vida entre os pobres, a vida cotidiana nas casas do Catholic Worker. Neste contexto, Dorothy oferece uma poderosa versão contemporânea do que a tradição espiritual cristã chamou de o uso dos sentidos:
“Deixemos que seu olfato se atrofie pelo odor dos resíduos, da degradação, da carne podre. Sim, esse odor de suor, sangue e lágrimas de que tão alegremente fala o Sr. Churchill, e que tão aberta e arriscadamente cita muita gente abastada. Deixemos que seus ouvidos fiquem surdos ao ouvir essas vozes ásperas, gritos da gente que entra e sai continuamente, vivendo amontoada e sem privacidade alguma. Deixemos que seu paladar se atrofie por essa comida insuficiente cozinhada em grandes quantidades para centenas de pessoas, esses pratos tão toscos, tanto que muitas vezes o odor da comida é repugnante.” (5)
Quanto ao sentido da audição, em 1957 escreveu a propósito de sua experiência na prisão: “Entre gritos, vaias, ameaças dos guardas e de uns aos outros, expressando-se desta maneira através das celas e corredores, eu, com meu rosário na mão, tentava rezar ao cair da noite. O ruído: talvez esta seja a maior tortura na prisão. Atordoa a audição e a mente” (6). Um último exemplo, agora sobre o sentido do paladar, que encontramos no jejum público que aconteceu durante a última sessão do Concílio Vaticano II, em Roma, 1965, enquanto os Padres Conciliares discutiam e finalmente condenaram a guerra nuclear. Escreve Dorothy:
“Da minha parte, não sofri nada pela fome, nem dores de cabeça ou náuseas, que são muito comuns nos primeiros dias de uma greve de fome, mas ofereci minha greve de fome em parte pelas vítimas de fome no mundo, e me parecia que tinha umas dores muito especiais. Eram de um tipo que nunca antes havia tido, e me dava a sensação de que perfuravam os ossos de minha coluna a cada noite, quando me deitava para dormir.” (7)
A partir daqui se entenderá bem ao que nos referimos ao falar de espiritualidade encarnada na vida de Dorothy Day. Sua ênfase no corpo concreto dos pobres evita qualquer interpretação espiritualista, desencarnada ou intimista. Deste modo, a doutrina do Corpo de Cristo e a tradição católica dos sentidos espirituais, são reformuladas e radicalizadas por sua localização social entre os pobres. O corpo e os sentidos não se limitam a uma experiência pessoal desconectada da realidade sócio-política, mas nos abrem, precisamente, a ela. Só nesse contexto tem lugar o encontro pessoal com Cristo, em seu corpo histórico entre os pobres.
Refletindo sobre as consequências da execução dos anarco-sindicalistas Sacco e Vanzetti em 1927, Dorothy Day recorda que o país inteiro de pobres e trabalhadores chorava suas mortes, e que, então, descobriu “esse sentido da solidariedade que me fez compreender pouco a pouco a doutrina do Corpo Místico de Cristo na qual todos somos membros uns dos outros” (LS, 158). Essa doutrina, muito comum em sua época, é a segunda noção teológica que permite a Dorothy Day articular sua síntese. Ela mesma diz, na introdução à La Larga Soledad que, na Igreja, encontrou “um corpo com o qual amar e se mover, amar e adorar. Encontrei a fé. Me converti em um membro do Corpo Místico de Cristo” (LS, 18).
Assim, o Corpo de Cristo proporciona uma solução concreta para os desejos mais íntimos de Dorothy, para seu anelo de comunhão e solidariedade. Em suas próprias palavras: “Sempre senti a unidade comum de nossa humanidade” (LS, 37); obviamente, o problema é como alcançar e como viver esta unidade cotidianamente. “A comunidade: essa era a resposta social à longa solidão” (LS, 239). Para Dorothy Day, a expressão “a longa solidão” significa “a fome espiritual” que só se pode satisfazer plenamente através da visão de Deus. Nos parágrafos finais de La Larga Soledad, Dorothy diz: “O céu é um banquete e a vida é também um banquete, com torta e tudo mais, onde há companherismo. Todos conhecemos a longa solidão e sabemos que a única solução é o amor e que o amor vem com a comunidade” (LS, 303). A partir daí, Dorothy tirará consequências para o terreno sócio-político. Por exemplo, o Catholic Worker nunca foi concebido como uma organização mas como um organismo (LS, 193), aspecto claramente inspirado pela imagen do Corpo de Cristo. “O que necessitamos é um organismo interno, a vida de Cristo dentro de nós. Mas sempre estamos pensando em termos de organização, a vida do mundo ao redor de nós” (AIG, 136-7). Com este enfoque, mais próximo da tradição anarquista de estrutura horizontal que das hierarquias de poder vertical, Dorothy vincula uma experiência espiritual devota com uma proposta sócio-política radical.
4. Fazer-se carne com os presos e sem lar…
Em 1976, Dorothy Day fez uma breve apresentação diante do Congresso Eucarístico Mundial de Filadélfia, naquela que seria sua última aparição em público. Recordou, então, de sua vida espiritual com estas palavras:
“Minha conversão começou faz muitos anos, em uma época na qual o mundo material ao meu redor começava a falar em meu coração sobre o amor de Deus (…). Também me atraiu o aspecto físico da Igreja. Pão e vinho, água (toda água é bendita desde que Cristo foi batizado no Jordão), incenso, o som das ondas e o vento, toda a natureza me chamava a gritos” (8).
Neste texto podemos ver uma expressão condensada de como sua visão espiritual se encarnou em uma realidade física e material. Com frequência se refere a esta realidade como o “sacramento da vida” (por exemplo, LS, 204), em uma expressão que anos depois tornaria popular o teólogo da libertação Leonardo Boff.
Esta visão sacramental do mundo se apóia no mistério da encarnação, que Dorothy entende não como um mero acontecimento do pasado, mas como um processo que continua na atualidade. “Toda minha convicção nessa época [de conversão] era que a Palavra se faz Carne hoje, que a Encarnação tem lugar agora. Não há verdadeira fraternidade entre os homens enquanto não vejamos a Cristo como nosso irmão” (AIG, 63). E conclui assim: “Quando meditamos sobre a vida de Nosso Senhor estamos meditando sobre a nossa. Deus se encontra no que parece pequeno e sem importância. Não olhes 1900 anos atrás. Olhe ao nosso redor hoje” (AIG, 68).
No resto deste texto, vamos ver dois exemplos de como Dorothy Day viveu esta espiritualidade da encarnação.
Em primeiro lugar, consideremos seu descobrimento da encarnação no contexto da prisão. A primeira vez que esteve na prisão, em 1917, teve um profundo efeito em sua vida. Experimentou um duplo processo de conversão pessoal: por um lado, “perdi todo o sentimento de minha própria identidade,” mas ao mesmo tempo se sentiu fortemente identificada com os outros presos: “Eu era aquela mãe a cujo filho haviam violado e assassinado” (LS, 88). Perde sua identidade prévia e a recupera, renovada, na identificação com as companheiras presas. De alguma maneira, enquanto estava presa começou a descobrir uma nova identidade. Cinco anos mais tarde foi encarcerada de novo, desta vez em Chicago. A este respeito escreveu: “Compartilhava, como nunca havia feito antes, da vida dos mais pobres dos pobres, os culpados, os despossuídos” (LS, 105). Presa em 1956 durante uma ação não-violenta, escreve: “Percebi uma sensação de intensa proximidade de Dios. Um grande sentido de Seu amor, um amor pelas Suas criaturas…” (AIG, 109). Este proceso de encarnação que Dorothy experimentou na prisão também se reflete, anos mais tarde, no seguinte texto.
Na cela onde estávamos detidos, havia seis mulheres esperando julgamento por homicídio. (…). Mas ali, misturada com elas, entre portas abertas e corredores livres, éramos irmãs. Vimos em nós mesmas nossa própria capacidade para o pecado, a violência ou o ódio” (AIG, 171-2).
A força dramática destes textos e experiências reflete as consequências que a doutrina da encarnação teve em sua vida: Assim como Jesus Cristo compartilhou nossa própria carne humana, Dorothy Day experimenta sua identidade em comunhão encarnada com as presas.
O segundo exemplo mostra a radicalidade da crença de Day na encarnação de Cristo e sua fraternidade com os pobres. Na realidade, o exemplo em si trata apenas de um momento significativo, que deve ser visto em relação com o conjunto de uma vida de entrega radical junto aos pobres (se não fosse assim, poderia parecer uma mera piada superficial ou frívola). Me refiro ao seu encontro com um leproso, uma situação comum na história cristã (a partir do próprio Jesus de Nazaré até São Francisco de Assis, Ignácio de Loyola ou Francisco Xavier, muitos cristãos experimentaram a graça na comunhão, o serviço e o contacto físico com os leprosos e outros excluídos e estigmatizados pela sociedade).
Escreve Dorothy: “’beijei um leproso’ não apenas uma vez mas duas – conscientemente – ainda que não possa dizer que seja muito melhor por havê-lo feito” (9). A primeira vez, se trata de uma mulher com câncer no rosto que estava mendigando na rua; ao passar, Dorothy tentou beijar sua mão. “A única coisa que podia fazer era beijar seu rosto sujo e velho no qual só havia buracos onde antes haviam estado seus olhos e seu nariz. Soa como ação heróica, mas não foi” (PP, 79).
A segunda ocasião ocorreu depois de uma dessas situações conflitivas habituais nos contextos de exclusão. Por questões que não vêm ao caso agora, Dorothy teve que negar uma cama a uma “prostituta bêbada com uma enorme boca sem dentes, avermelhada, um pesadelo de boca” (PP, 80). Mas, ao fazê-lo, beijou-a e abraçou-a. O que poderia ser uma fria decisão burocrática ou técnica, compreensível a partir dos parâmetros da intervenção social, converte-se em uma expressão de fraternidade e comunhão, uma oportunidade de encontro pessoal na qual ambas as mulheres se humanizam.
Resumindo, a espiritualidade de Dorothy Day (encontro com Jesus, Corpo de Cristo, sentidos espirituais, vivência da encarnação) se plasmou em um movimento de descenso às camadas mais marginalizadas da sociedade, um movimento radical de consequências revolucionárias. Parece claro que Dorothy Day soube compreender a complexidade da realidade social e a necessidade de uma resposta igualmente complexa. Estava convencida de que os cristãos devem sempre manter a proximidade com e da vida entre os pobres, criando alternativas a partir dessa localização social. Também sabia que os seguidores de Jesus Cristo, crucificado por sua fidelidade ao Deus dos pobres, estão chamados a reproduzir sua oposição às forças e poderes do mal. E, finalmente, soube que há uma responsabilidade cristã a favor do bem comum, que brota dos outros dois elementos, e para a qual podem surgir algumas vocações específicas.
Na esteira de Dorothy Day e do Catholic Worker, as comunidades cristãs radicais podem ser nosso modo de encarnar o projeto amoroso de Deus em um autêntico contra-Império, o Corpo de Cristo. Somos chamados a viver um caminho de descenso radical de consequências revolucionárias, para poder plasmar uma verdadeira revolução a partir de baixo.
Autor: DANIEL IZUZQUIZA trabalha como coordenador do Centro «Pueblos Unidos» para o apoio integral à família migrante e vive num bairro madrilenho chamado Ventilla, numa comunidade orientada para a acolhida de imigrantes africanos. Enquanto finalizava seus estudos de teologia nos EUA, teve contato com Catholic Worker, visitando quatro comunidades e vivendo durante um tempo em uma delas. Publicou, entre outras obras: Rincones de la ciudad. Orar en el camino fe-justicia (2005); Cons-pirar; Enraizados en Jesucristo, e, junto com Juan A. Guerrero, Vidas que sobran. Los excluidos de un mundo en quiebra (2004).
NOTAS
(1) Dorothy Day, The Long Loneliness, p. 39. Introdução de Robert Coles (New York: Harper Collins, 1997 / trad. cast. La larga soledad. Santander: Sal Terrae, 2000). Daqui em diante, citamos como LS.
(2) William D. Miller, All is Grace: The Spirituality of Dorothy Day, 191 (Garden City, NY: Dobleday & Co., 1987). Esta obra é, na realidade, uma edição de apontamentos espirituais de Dorothy Day. Daqui em diante me referirei a ela, no corpo do texto, com as siglas AIG. Concretamente, esta citação provém de uma carta a sua amiga Nina Polcyn, em 8 de dezembro de 1975.
(3) Escreve em suas notas durante um retiro espiritual: “Talvez os hagiógrafos eram demasiado propensos a revolverem-se nos vômitos, no pus, nos escarros (o totalmente repuLSivo), com o objetivo de pôr o ponto nos is, como diria Peter [Maurin], ou seja, para mostrar como os santos se elevavam sobre o natural, o humano, e chegavam a ser sobrenaturais, sobrehumanos, em seu amor” (AIG, 105). Dorothy não sentiu a necessidade de abandonar a dureza humana, mas encontrou o amor sobrenatural atuando em meio a essa mesma miséria humana.
(5) Ibidem.
(6) Dorothy Day, “Dorothy Day Writes from Jail”: The Catholic Worker (Julho-Agosto 1957). Consultado em http://www.catholicworker.org/dorothyday, doc. # 725. Durante um retiro em 1948 escreveu: “A cidade está repleta de ruídos ultimamente. (…) O ruído tem sido uma das coisas que mais me oprime” (AIG, 132).
(7) Dorothy Day, “On Pilgrimage”: The Catholic Worker (Outubro 1965). Consultado em
(9) Dorothy Day, Loaves and Fishes (New York: Harper and Row, 1963), 79. Daqui em diante, todas as citações deste livro se indicarão, no corpo do texto, com as siglas PP. Há tradução para o espanhol: Panes y peces. Historia del “Catholic Worker Movement”. Santander: Sal Terrae, 2002.
Texto publicado originalmente em versão completa na revista Crstianisme i Justícia, outubro 2005.