Falando das coisas simples da vida
Há tempo para todo propósito na vida, nos ensina o livro de Eclesiastes (3.1-9). Assim, há tempo de coisa grande. Tempo de alto consumo de adrenalina. O primeiro namoro, o nascimento do primeiro filho, a conversão a Cristo, a morte de um ente querido, uma doença repentina, a perda inesperada do emprego… São tempos e momentos fortes, uns marcados pela felicidade; outros, pela tristeza. Mas esses são tempos e momentos.
A maior parte da nossa vida, no entanto, quase sempre ocorre num clima que poderíamos chamar de “normalidade”. É acordar e dormir a cada dia. O café da manhã seguido do trabalho. O almoço composto de feijão com arroz. É chegar em casa, conversar sobre as coisas do dia e preparar-se para dormir. É preocupar-se com a escola dos filhos, a compra no supermercado e o saldo bancário. É ir sempre à mesma igreja. Essa normalidade, aliás muito importante, estabelece uma rotina que se constitui em base para a vida e forma em nós uma espécie de camada de resistência que nos prepara para os tempos de grande consumo de adrenalina.
A pergunta é se a nossa vida cristã também é assim, uma vida que percebe a Deus na cotidianidade e que busca uma vida testemunhal em meio ao feijão-com-arroz e à escola das crianças. Henri Nouwen relata uma conversa muito interessante entre ele e John Eudes, o abade de um mosteiro trapista. Ao ouvi-lo confessar que havia anos tinha uma fantasia de que um dia Deus iria irromper em sua vida de forma tão espetacular que o resultado inequívoco seria uma rendição incondicional de sua vida a Deus, o abade lhe respondeu: “Você quer que Deus lhe apareça na forma em que suas paixões o desejam, mas estas paixões o tornam cego para a presença de Deus na sua vida hoje”.
Pensei nas muitas vezes em que busquei e esperei por uma ação espetacular de Deus na minha vida, e tudo o que eu recebi foi o silêncio. Pensei ainda em muitas das nossas igrejas onde se vê um constante espetáculo de fantásticas expectativas; e quando estas não são concretizadas se diagnostica falta de fé e de poder espiritual. Tanto num caso como no outro, costumamos ver as nossas paixões dominando o cenário, num enorme esforço por enquadrar a ação de Deus na moldura das nossas apaixonadas expectativas. O fato é que Deus não responde, nem quando, nem da forma como esperamos. Aliás, Ele já respondeu antes de pedirmos, mas o fez do seu jeito, na simplicidade e cotidianidade da vida: no ar que respiramos, na comida que comemos, no abraço que recebemos, na sua palavra que nos consola e na normalidade da vida, que só existe porque Deus nos sustenta com a sua graça.
A missão integral quer ter esse jeito simples de uma vida que se vive na presença de Deus e que se sabe profundamente amparada por Ele. Uma vida que procura obedecer a Deus no dia-a-dia e nas pequenas coisas e nos gestos que compõem a maioria dos nossos dias e dos nossos tempos. Uma vida que encontra nos caminhos de Jesus o seu modelo de viver.
Olhando as coisas básicas da vida
A vida de Jesus foi simples. Ele andou bastante, sempre de um lugar para outro, e a maior parte do seu tempo de ministério foi gasto com gente pobre, simples e carente. As crianças, as mulheres, os doentes e os cansados de alma teimavam em ficar ao seu redor — e Ele mesmo queria isso.
É curioso observar quanto tempo nós gastamos complicando a vida, maquiando nossa aparência, mexendo os pauzinhos para encontrar-nos com as pessoas certas e fazer os contatos adequados. Queremos ser importantes, ricos e bonitos, e ser vistos ao lado de gente importante, rica e bonita, nem que isso aconteça dentro dos muros das igrejas: uma foto junto com um pregador famoso, um autógrafo de um escritor conhecido, um jantar com uma banda badalada, uma experiência espiritual “top” numa igreja da moda, criando assim a nossa “socialite crente”.
Mas Jesus não faz esse jogo. Ele não busca aparecer em destaque nas fotos, não encarrega um de seus discípulos de fazer a filmagem adequada, nem passa a vida distribuindo “cartões de visita” acompanhados de uma fotografia “clean”. Aliás, Ele geralmente inverte essas coisas: convida-nos a ir a lugares onde não gostaríamos de ir, faz coisas que não consideramos estratégicas e se relaciona com gente que costumamos evitar.
Os exemplos são variados e a pergunta é se queremos segui-lo. Para usar uma linguagem que vem do livro de Jonas, Jesus sempre insiste em levar-nos a Nínive, quando preferiríamos ir a Társis. Porém o convite de Jesus é contraditoriamente bonito.
Társis é o lugar que consideramos melhor e mais estratégico. É mais puro, mais bonito e mais estético. O ar que se respira cheira bem, mas o ambiente é carregado de ilusão. Társis é a irrealidade que nunca dá consistência ao nosso cotidiano. As vitrines são bonitas, mas os preços são caros. As pessoas são perfumadas, mas caminham apressadas. Os sorrisos e os cumprimentos se repetem, mas nunca constroem relacionamentos. A luz que ilumina o ambiente atrai, mas só se pode ficar lá de fato quando se tem olhos para consumir e cartão de crédito para pendurar nossos anseios, sonhos e dívidas. De Társis, sempre se sai com menos do que se chega, e o que lá se consome não atravessa a rua do encontro com a realidade. Társis é o lugar que alimenta o nosso apetite, onde sempre constatamos que temos fome, mas nunca somos saciados. É o lugar editado, mas avesso a transformações.
Nínive, pelo contrário, cheira mal e as pessoas parecem carregadas de medo, suspeita, agressividade e solidão. Aparenta ser um lugar onde não há espaço para mudança nem carência de transformação. Mas o fato é que Nínive esconde uma profunda surpresa. No encontro com a presença e a palavra de Jesus, ela se converte: o possesso é liberto, o doente é curado, o desprezado é visitado, a criança é recebida, a mulher é acolhida e o pecador é perdoado. Nínive, para nossa surpresa, é transformada! Ela esconde um potencial de salvação que só é proporcional à enorme ausência dessa mesma salvação e transforma-se numa grande plataforma popular onde a graça de Deus tem a sua surpreendente performance de amor e salvação: “Os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e as boas novas são pregadas aos pobres” (Lc 7.22).
Na missão integral vemos Jesus dirigindo-se a Nínive e deixando muito claro a que veio, fazendo diferença na vida das pessoas abertas e carentes e nos desafiando a segui-lo. É simples. É básico. É bonito. É assustador. A pergunta é:
Vamos ou não segui-lo?
Nota
Este artigo foi inspirado na palestra proferida pelo autor no CBE2
Vi aqui no Blog do Ultimato
Vale muito a pena conhecer!
ps.: Se vc comprar alguma coisa na Ultimato, manda um email pra eles dizendo: Pq vc não patrocinam o Blog dos CRENTASSSO!? ;D (Vai q cola!)