Que tempos, e que costumes! Sobre o absurdo que se tornou assistir a um simples debate na TV

O tempora, o mores!

Esse famoso clamor do poeta, orador e político romano Marco Túlio Cicero (106-43 a.C.), geralmente, é entendido como um lamento diante da decadência dos costumes.

Imagino que você já ouviu ou viu essa frase por aí, inclusive na boca e na pena de teólogos e pastores para alertar a igreja e a sociedade para a degradação moral. E eu poderia incluir aqui a degradação nos debates políticos e na falta de completa civilidade de quem deveria nos guiar nela.

Nada mais incorreto.

2.

Cícero não estava chamando a atenção para falta de moral da sociedade.

“Mores” não se refere à moralidade em si, mas à perversão das instituições e tradições romanas perpetradas pelo absurdo catilínico. Lúcio Sérgio Catilina (108-62 a.C.) era senador e cunhado de Cícero. Catilina era uma espécie de miliciano, provinha de família nobre, mas nasceu pobre e logo se envolveu com a criminalidade. Ele assassinou o irmão por cargos e, não via problema em criar uma teoria da conspiração contra o cunhado, para quem perdera a eleição para cônsul.

Catilina estava endividado com a eleição e planejou um golpe. Para isso, apelou à população com argumentos de cunho econômico. Os ricos estariam contra ele, explorando-o financeiramente, e somente ao removê-los é que o povo estaria no controle.

Ou seja, faça de conta que você está do lado do povo e ele vai te defender sempre.

3.

Catilina, que também era membro do Senado — não é só o nosso congresso que tinha gente de moralidade duvidosa nas fileiras — conseguiu reunir tropas. Cícero, porém, reuniu provas da tentativa de golpe e acusou Catilina perante o Senado, oficialmente, em 7 de novembro de 63 a.C.

O próprio Catilina esteve presente na sessão.

Cícero se indignou, dizendo que não apenas era inconcebível que um inimigo público estivesse vivo, mas que se sentasse livremente em uma cadeira no Senado.

— Que tempos e que costumes! — clamou Cícero, diante do absurdo de um senador criminoso, miliciano e golpista estar ali, participando livre e desimpedido de uma instituição contra a qual ele tramava.

4.

Não é preciso muito para entender como o absurdo catilínico se instalou como método no Brasil. Alguns, posando de Cíceros, usaram da manobra de Catilina para guiar a população contra as instituições fundamentais do Estado. Começaram há muito tempo, quando perceberam que poderiam se utilizar do descontentamento do povo para guiá-los para onde quisessem.

Os catilínicos usam todas as armas: com o mercado, na língua do mercado, com as igrejas, na língua das igrejas, com os militares, na língua dos militares.

Dizia um profeta catilínico ao povo, “cansado de tudo o que está aí”, que era preciso acabar com os “esquerdopatas”. Um sofista catilínico dizia que era necessário reescrever os livros de história “sem ideologias”, como se a dele não fosse também uma ideologia. Moral, para Catilina, não seria agir de acordo com uma norma moral válida porque é racional, ou fruto de consenso político, ou mesmo correspondente a um bem supremo, nem mesmo por conta da Bíblia. Moral é agir de acordo com certos costumes de um grupo. Isso seria o verdadeiro ciceronianismo. Assim a violência se tornou o padrão, e a surra pública espetáculo de entretenimento.

— O tempora, o mores, quando Catilina convence o povo de que ele é Cicero!

5.

Diante do absurdo dessa inversão e da completa falta de possibilidade de imaginar alguma esperança na política, eu me coloquei em busca de respostas.

Seria possível encontrar esperança nas estruturas deste mundo?

Duas respostas se mostraram possíveis:

Albert Camus tem razão e não há esperança neste mundo  —  não há sentido nas coisas, nem uma razão que habite igualmente em todos e nos una, a vida e o mundo são absurdos. Se eu escolher Camus, então restaria a mim apenas encontrar algum prazer estético. Esse seria o único sentido da vida.

A outra opção é que Sören Kierkegaard tenha razão e, apesar da absurdidade que nos adoece à morte, há um sentido e uma esperança  —  ela se encontra na outra margem do rio (citando C. S. Lewis) e exige fé no verdadeiro absurdo que Deus pode se fazer humano e sofrer a absurdidade do mundo catilínico em si mesmo.

Se os que têm fé não confessarem que o catilínico é doença, temo que a resposta da fé seja convertida em absurdo e o absurdo da falta de fé seja o que resta como verdade para o mundo.

O tempora, o mores!

*Este texto foi publicado originalmente na newsletter “Teologia do Alemão” do Alexander Stahlhoefer. Receba semanalmente em seu e-mail conteúdo teológico de qualidade. Sem propaganda, sem spam. Apenas teologia para a sua vida e coração. Assine a newsltter do Alex.

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