A Cidade Surda

Qual é o texto mais difícil da Bíblia? Pra mim, por muitos anos, a resposta para essa pergunta era Deuteronômio 22.23–27. Esse pequeno trecho da Torah traz a legislação do povo hebreu sobre o estupro. A regra é curta, não inclui todo debate que hoje levantamos sobre o assunto, mas traz alguns elementos que, à luz das discussões modernas sobre direitos da mulher, nos soam injustos e até maus.

A regra era simples: Se uma mulher fosse tomada à força por um homem na cidade e não gritasse por socorro, os dois seriam apedrejados por adultério. Se ela fosse tomada no campo, onde seus gritos de socorro não seriam ouvidos, ela seria poupada e o homem morto. Essa regra hoje seria criticada pois realiza aquilo que chamamos de “culpabilização da vítima”, que é quando atribui-se à vítima alguma culpa pelo crime sofrido. A mulher teria uma responsabilidade de gritar, se não fizesse, seria considerada culpada mesmo que o ato sexual não tivesse sido consensual.

Como entender que o Deus justo teria legislado de forma tão injusta? Alguns críticos da fé cristã tomam textos como esse para apontar a imperfeição moral da Escritura. Alegam que a Bíblia é um texto rico em informações históricas, mas fruto das mesmas imperfeições que vemos hoje, os mesmos abusos de poder, os mesmos interesses escusos, as mesmas explorações.

Esses argumentos falham por alguns motivos: primeiro, em geral, cristãos sabem que as leis civis do Antigo Testamento estavam regulando um mundo injusto dominado pelo pecado e apontando para uma realidade superior vindoura. Segundo, do mesmo povo hebreu veio Jesus que dignificou as mulheres em todas as situações de exclusão, vulnerabilidade, despersonalização e violência. Salvou da morte uma mulher apanhada em adultério, dignificou uma mulher samaritana abandonada por seu marido, limitou o repúdio apenas a casos de imoralidade sexual, sentou-se com prostitutas, curou uma mulher doente que era excluída pela sociedade, curou uma viúva estrangeira, enfatizou a importância das mulheres estudarem ao ensinar Maria e convidar Marta a também aprender com ele, libertou uma mulher advinha explorada por homens que cometiam abuso espiritual. Depois o hebreu Paulo exigiu que os homens dessem suas vidas por suas mulheres, o que era absurdo para a mentalidade da época. Terceiro, mesmo limitada, a lei de estupro do Antigo Testamento ensina alguns princípios importantíssimos para a sociedade moderna, especialmente a Igreja. São princípios que, mesmo com toda nossa evolução jurídica, não têm sido aplicados no nosso país. E é sobre isso que quero falar agora.

A Voz da Vítima

O sistema penal hebraico era todo baseado em testemunhos. Não havia perícia policial, IML, CSI etc. A verdade era averiguada pelo relato das testemunhas apresentadas. Por essa razão, mentir em juízo era um dos pecados listados no decálogo — “Não darás falso testemunho contra o teu próximo” (Ex. 20.16) — e aquele que cometesse um falso testemunho que resultasse na morte de um inocente seria também considerado culpado e digno de pena capital (Dt. 19.16–21).

Mas o que fazer quando não há testemunhas? No caso do estupro cometido em lugar isolado, não havia dúvida: a voz da mulher tem peso maior. É isso que entendemos dos versículos 25 e 26:

E se algum homem no campo achar uma moça desposada, e o homem a forçar, e se deitar com ela, então morrerá só o homem que se deitou com ela; Porém à moça não farás nada. A moça não tem culpa de morte; porque, como o homem que se levanta contra o seu próximo, e lhe tira a vida, assim é este caso.

Ninguém viu o caso, pois só estavam os dois no campo, porém a mulher tem a presunção de inocência e o homem de culpa. Hoje não dependemos apenas dos testemunhos para averiguar a culpa de um caso, mas é imoral a forma como esse princípio bíblico é totalmente invertido em nosso tempo. Qualquer mulher que levante sua voz para denunciar um abuso já conta com todo o tipo de dúvida e descrédito que receberá em troca. “Ela tem problemas psicológicos”, “é uma interesseira”, “acho que ela queria e depois se arrependeu” etc. Isso acontece tanto nos âmbitos policiais e jurídicos, como também nos círculos informais e privados como igrejas, escolas e famílias. É claro que mulheres também mentem e que existem falsas acusações de estupro, mas em um país em que quase toda mulher já sofreu um assédio e em que os casos de estupro batem as dezenas de milhares todos os anos não devíamos tomar toda acusação como um devaneio ou uma armação . É preciso criar um ambiente de segurança para as vítimas de violência sexual, onde elas possam saber que terão ouvidos justos lidando com suas denúncias.

Os silêncios do texto

Além do que o texto diz, há coisas que ele não diz e que são especialmente importantes para a forma como olhamos o estupro hoje. Primeiro, o texto não traz nenhum tipo de condição em que o estupro seria mais aceitável ou menos “criminoso”. Não há nenhuma menção ao horário em que essa mulher estaria no campo, nem à roupa que ela estaria vestindo ou deixando de vestir. Não há crime em ela andar no campo e nem restrição de horário para que ela faça isso. A lei protege a liberdade da mulher de ir e vir para onde quiser.

O segundo silêncio importante do texto é sobre a identidade do agressor. Essa lei é voltada para o povo de Deus, a comunidade que adora e serve o Deus vivo. Ela estava fundamentada em preceitos morais rígidos e elevados e deveria ser um exemplo de justiça e sabedoria para outros povos (Dt. 4.6). Mas isso não faz com que o povo seja visto como incapaz de cometer atrocidades. A lei não diz que a solução para o estupro é construir um muro para impedir que os cananeus, os filisteus (ou os mexicanos, como disse alguém recentemente) entrem na terra e estuprem as mulheres. Dentro da própria comunidade há pessoas que cometem atrocidades. Temos visto muitas denúncias de abuso moral e sexual contra pastores e líderes espirituais. A primeira reação da igreja e da comunidade cristã mais ampla é a de defender a honra do acusado. É claro que não devemos condenar ninguém de antemão, mas também não devemos obstruir a justiça ou calar a verdade porque o acusado “é um homem de Deus”. Fosse assim, o rei Davi não teria cometido o crime que cometeu com Bate-Seba.

Os Ouvidos da Cidade

E a mulher estuprada na cidade? Esse não é um caso de culpabilização da vítima? Aos nossos olhos contemporâneos, exigir que a vítima sob violência peça ajuda é um absurdo. Mas naquele contexto a lei traz um elemento importante para a proteção das mulheres: ela pressupõe uma cidade que escuta. A mulher deveria estar mais segura na cidade do que no campo, porque na cidade há pessoas atentas à violência sexual e que estão prontos para socorrer ou para, pelo menos, testemunhar em favor dela. A cidade funciona como uma rede de proteção às mulheres. Não deveria ser possível que um estuprador agisse no meio de pessoas que rejeitem totalmente os crimes sexuais.

Hoje no Brasil, a imensa maioria dos casos de estupro não é solucionada. Em 2016, apenas 3% dos casos chegavam a uma condenação. Muitos dos criminosos não só ficam livres das penas, como cometem o crime novamente. E isso não é por falta de cidades, ou de pessoas nas cidades, mas é pela surdez dessas pessoas. A rejeição total ao crime de estupro, que deveria ser a marca da cidade, é substituída pela indiferença e o machismo, que ajudam a acobertar casos, ignorar indícios, livrar abusadores, desmerecer testemunhas. Isso somado a uma cultura de sexualização das mulheres e de objetificação em que a rejeição às investidas dos homens só são justificadas se ela já “pertencer” a outro homem.

Isso precisa mudar também na Igreja. Como povo de Deus que recebe sua lei, precisamos ser a cidade que ouve. Nossos meninos precisam ser ensinados sobre o pecado do machismo, nossas meninas precisam ser valorizadas e apoiadas, nossas mulheres precisam ser ouvidas, nossos homens precisam de instrução e arrependimento. Num país como o Brasil, não podemos ignorar que a violência sexual está no meio dos cristãos e deve ser repudiada e combatida. Pois se ouvimos a voz de Deus na Bíblia, precisamos ouvir a voz das vítimas.

*Texto de Cacau Marques, originalmente publicado em seu Medium, onde ele traz reflexões sobre a espiritualidade cristã e a sociedade.

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