Tornei-me profeta de mim mesmo

Eu perdi a noção, confesso. Perdi a noção do respeito, perdi a noção da honra e da intimidade. Essa semana eu abri os olhos e não sabia mais o que fazer: até que ponto o cristianismo que vivo me impele a ajudar os meus irmãos, e até que ponto eu estou, como cristão, sendo cegado pelos meus princípios pessoais e fanáticos? Uma das maiores dificuldades de se viver uma igreja orgânica é que não temos tempo, ou pelo menos, morremos de pressa de ver as coisas acontecerem.

Num meio institucional, hierarquizado, as coisas acontecem de maneira simples e rápida. A burocracia ajuda: se uma pessoa, que frequenta a comunidade é vista fazendo algo que está escrito como errado, um líder o aborda e tenta trabalhar com ele o que é a visão do Reino daquela instituição e como ele pode fazer para “melhorar” sua caminhada para Jesus (de acordo com aquela instituição).

Já numa igreja orgânica, sem hierarquias ou responsáveis pelos irmãos, onde todos cuidam uns dos outros, uns pelos outros, são diversos fatores que influenciam essa ajuda. Primeiro, é raro ter essa visão de atitude errada e pecaminosa – claro, certas coisas como furto e homicídio passional são erradas em qualquer congregação cristã, mas existe um limbo cinzento em que não são bem as atitudes que definem o que é certo e o que é errado, mas a intenção, a predisposição, a motivação.

O que faz esse limbo ser tão cinzento é que nós, simplesmente, não conseguimos compreender ou captar a psiquê das outras pessoas – daí, na igreja orgânica, não é qualquer um que tem essa liberdade para intervir na vida alheia: temos então, o primeiro princípio da igreja orgânica, o relacionamento. Sem relacionamento íntimo, cotidiano, diário, não conhecemos o nosso irmão; se não o conhecemos, ele não é nosso irmão, é apenas um cara que a gente vê volta e meia no meio dos rolés.

O relacionamento é causa de uma outra grande dissensão entre as igrejas orgânicas e institucionais. Numa igreja institucional, é imperativo que as pessoas andem umas com as outras e a igreja seja, de fato, una. Há diversas programações e a segunda palavra mais sagrada depois de conversão é comunhão. Paintball na igreja, piquenique dos bróder, churrascão dos homens, chá das mulheres, uma gigantesca malha de eventos estereotipados seguindo a faixa etária e social dos irmãos é realizada na qual a presença não é apenas resultado de um convite, mas de uma convocação. Faltar o churrasco dos homens para ir ao cinema com a esposa tem condenação social mais forte do que faltar à vigília para ir num bar de strip.

Já na igreja orgânica, não há mãos invisíveis que guiam a formação de relacionamentos. Não existe culto dos jovens adultos para reunir todas as pessoas que já sacrificaram todos seus ídolos atrás de um relacionamento com alguém do sexo oposto e já estão desesperados. As pessoas tem que se virar, se trombar e achar algumas amizades perdidas no meio do caminho – fazendo inimizades e tropeçando uns nos outros mesmo. A igreja não é tão una assim para cantar somos corpo assim bem ajustados totalmente ligados de mãos dadas, mas pelo menos você percebe isso de primeira sem se iludir muito. O problema é que você nunca sabe realmente se tem intimidade suficiente para dar conselhos a alguém, sem que esse te peça.

Então, no fim, acabei preso não pelas amarras institucionais, mas pela dificuldade orgânica. Não são os fios de uma instituição rígida, engessada que me limita; é o grande vazio da igreja orgânica, que, ao invés de me libertar, me aprisiona dentro de mim. Tendo, cada vez mais, a ser egoísta e crer que não devo, ou não posso, influir na vida alheia para falar de pecados porque não sei realmente o que eles vivem. Tendo, cada vez menos, a me importar com o que falam de mim, mesmo que seja para mim que falam, sobre meus defeitos ou alguns detalhes da minha caminhada cristã, porque acredito, no íntimo do meu ser, que as pessoas não vêem o plano geral – só eu e Deus vemos.

Tornei-me profeta de mim mesmo. E, se continuar assim, condenar-me-ei ao inferno.

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