***Contém spoilers do livro***
Durante anos passei por este livro em diversas livrarias, e a primeira coisa a me chamar atenção nele foi sua capa. Que tatuagem mais linda, eu pensava. Em segundo, a curiosidade de ler sobre a Yakuza – a grande e temível máfia japonesa. Somente anos mais tarde fui comprar o livro, e levei mais algum tempo para tomar coragem para o ler.
As sinopses de internet e da contra-capa do livro sempre prometeram muito:
“Esta obra é o relato verídico sobre a luta bem-sucedida de uma jovem mulher, filha de um rico chefe da Yakuza, para escapar do ostracismo e do abuso. Também uma rara oportunidade de entrar no hermético mundo da Yakuza e, o melhor, a partir de um ponto de vista privilegiado.”
Confesso que a princípio, a leitura deste livro me decepcionou. Imaginei durante anos que eu saberia de segredos escusos e terríveis da Yakuza. Achei que a menina teria sofrido nas mãos de um pai violento, que a teria obrigado a se casar com um homem mais velho, independente da vontade de Shoko.
Quando sentei ler, minha decepção não tardou a chegar. Shoko tomou seu próprio caminho rumo à sua destruição. Shoko tinha uma vida relativamente normal para a filha de um mafioso. Estudava numa boa escola, tinha uma mãe amorosa um irmão e irmãs. Apesar disso, toda a família sofria com o temperamento agressivo e intempestivo do pai, e com o preconceito de toda a vizinhança, pois estes sabiam que o sr. Tendo era da Yakuza. Na escola, Shoko se sentia deslocada e sozinha, e dentro disso tudo ela acaba conhecendo o mundo dos yanki através de sua irmã Maki, aos 12 anos de idade. Nas palavras de Shoko, ser uma yanki era “uma dessas adolescentes rebeldes que descolorem o cabelo e andam pela cidade em carros envenenados ilegalmente ou motocicletas com o escapamento aberto”.
A partir desta nova vida apresentada a ela por sua irmã, Shoko ruma à sua destruição. Drogas, sexo, brigas de rua super violentas e relações amorosas auto-destrutivas passaram a ser a vida de Shoko. Neste meio tempo o pai de Shoko adoeceu, viu seus negócios ruírem e por isso, abandonou a Yakuza. Shoko passa a ter encontros sexuais com um ex-colega Yakuza de seu pai, que promete não cobrar todas as dívidas do sr. Tendo caso Shoko mantenha o caso com ele. Além disso, este homem em questão consegue suprir a dependência química de Shoko no tal speed, que eu acredito ser heroína pela descrição do livro.
Neste ponto do livro eu já odiava Shoko, e quase nem pena dela eu conseguia sentir. Ela escolheu o caminho que trilhou, era o meu pensamento. Honestamente, ainda o é hoje em dia. Talvez se vivesse numa família não-Yakuza, ela não se sentiria sozinha e não teria se sentido atraída pela vida yanki, mas colocar tudo no campo das possibilidades é isentar Shoko de sua culpa em suas próprias escolhas. Além do mais, nem sua irmã mais nova nem seu irmão mais velhos trilharam este rumo, mesmo tendo vivido a mesma vida difícil e tendo enfrentado os mesmos problemas que Shoko e Maki.
Mas mais do que uma decepção, o livro me foi um choque. O livro retrata um Japão que eu nunca imaginei existir. Um Japão de um machismo incrivelmente forte e aberto, onde as mulheres são brutalmente espancadas por seus namorados ou maridos e ninguém faz nada. Um Japão onde simplesmente não há um sistema público e gratuito de saúde. Sei que o SUS não é nenhuma maravilha, mas quando percebi a realidade japonesa, confesso que dei graças a Deus diversas vezes por termos um serviço de saúde gratuito no Brasil. O brasileiro tem uma síndrome de inferioridade e desmerecimento do próprio país que, ao ler este livro e conhecer um Japão tão assustador assim, fez sim eu agradecer por viver num país em desenvolvimento, ao invés de viver no belo país de primeiro mundo que é o Japão, mas nas condições apresentas no livro.
No período da sua vida narrada por Shoko, praticamente todos os homens com quem ela se envolveu a espancaram brutalmente mais de uma vez. E eu digo de espancamentos mesmo. Costelas quebradas, semanas no hospital, infecções oriundas dos espancamentos que levaram meses para se curar. Em todos os casos, ela nunca denunciou, pois sabia que ninguém faria nada para defendê-la, para protegê-la de algo que é considerado normal no Japão.
Apesar de não mostrar quase nada da estrutura da Yakuza, de não contar nenhum segredo revelador e nem de ter sido apenas vítima na história, a biografia de Shoko Tendo é um livro forte e chocante em muitos aspectos. Foi um livro que me fez questionar muito de meu senso comum e olhar para além do que eu – e boa parte da nossa sociedade – sempre idealizei como sendo o Japão. Um relato muito mais profundo da cultura japonesa do que dos segredos da Yakuza, mas mesmo assim muito bom. Vale a leitura.