Sinto muito, mas não posso fazer nada…

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“Falem e ajam como quem vai ser julgado pela lei da liberdade; porque será exercido juízo sem misericórdia sobre quem não foi misericordioso. A misericórdia triunfa sobre o juízo!” (Tiago 2:12-13)

Esse dias chegou uma mulher aflita no meu trabalho. O irmão dela, dependente químico, estava preso por ter tentado roubar uma moça na rua, para comprar drogas. A irmã desse cara veio pedir ajuda a fim de tirá-lo da cadeia, queria explicar que seu irmão era boa pessoa, mas tinha ficado assim agressivo por conta de uma provável crise de abstinência. Apesar de ser uma história muito triste, a resposta à ela foi “sinto muito, não podemos fazer nada”. E foi embora cabisbaixa, sem esperanças.

A vida é dura, cheia de “sinto-muitos” e de “só estou cumprindo ordens”. Não se quer saber do seu histórico, como foi levado a se perder de si mesmo, a não ter perspectivas, e a se comportar como quem não tem nada a perder, porque tudo o que tinha já lhe foi tirado, inclusive sua própria dignidade.

Como contraponto, os cristãos são chamados a serem graciosos, não somente a pregar a graça e a liberdade, mas a agir como tal. A igreja cristã é a igreja das infinitas oportunidades e das causas perdidas. Não importa se você chegou há muito tempo, se você chegou só nos 45 do segundo tempo. Estamos todos igualmente debaixo da mesma graça e da mesma cruz.

“Sinto muito” e “não posso fazer nada” e “não é meu departamento que resolve isso” são respostas que não encontram lugar no Reino. A lógica do Reino subverte a lógica do nosso pequeno mundinho, diante de um Deus que arregaça as mangas e lava os pés de todos, até mesmo de quem irá o trair poucas horas depois. No cristianismo, somos chamados à responsabilidade pela salvação uns dos outros. Quando todos falharam, quando a família, amigos (e por vezes, até alguma instituição religiosa) deixaram de dar suporte, a igreja cristã é aquela que não pode voltar as costas. A igreja é a última instância.

Ser gracioso é ter paciência, é não desistir, é não perder a esperança e crer no extraordinário. Portanto, ao vermos a ausência de graça no mundo (ou a “desgraça”), não temos o direito de reforçar os estigmas e estereótipos incutidos nestas pessoas. Se nós desistirmos, quem vai dar a última oportunidade? Cremos nas mil oportunidades. A misericórdia de Deus se renova todos os dias, gostam de dizer os cristãos. Mas ao mesmo tempo, sabemos que a misericórdia de Deus triunfa sobre o juízo (Tiago 2:13). Se nós queremos misericórdia de Deus, precisamos ser misericordiosos com todos, também todos os dias. Que Deus renove a sua misericórdia sobre nós, para que também tenhamos renovada a misericórdia para com todos.

A graça de Deus nos faz lembrar de quem somos, ao olharmos para nós e que somos tão dependentes de Deus como os outros, a quem todos viram as costas com um “sinto muito, não posso fazer nada”. O legalismo julga os outros não como Deus nos julga, e sim numa perspectiva meritocrata, que não tem nada a ver como Deus olha para nós. Deus nos olha com misericórdia. A graça nos lembra quem somos e o que Deus é na nossa vida. Por isso, a igreja deve ser um lugar inclusivo, pois todos estamos debaixo da mesma graça e da mesma cruz.

Quando tomamos ciência desta perspectiva, mas não nos conduz à intimidade, ao serviço e à missão, há algo errado com nossa espiritualidade. O caminho traçado por Cristo é o caminho da compaixão e da misericórdia. O que é totalmente diferente do sentimento de pena. A pena é um mero sentimento, enquanto a misericórdia conduz a um comprometimento, e a compaixão me empurra a uma ação concreta que expresse a graça de Deus.

A responsabilidade de todo cristão é viver uma fé engajada, sinalizando o Reino em meio a um mundo sem esperança. Infelizmente, temos visto cristãos vivendo em suas confortáveis bolhas, e se esquivando de sua responsabilidade, afinal “não é problema meu”, “não posso fazer nada”, estamos cheios de desculpas prontas, mas nunca estamos prontos a servir.

Uma vida verdadeiramente consagrada a Deus deve manifestar a prática de boas obras (Tito 2:14). Quando você diz “Deus está no controle” e “Deus tem um propósito para tudo” e “tudo coopera para o bem daqueles que amam a Deus” e “tudo posso naquele que me fortalece”… será que não são versões “gospel” do “sinto muito, não posso fazer nada”??? É como dizer, “isso não é problema meu, deixa que Deus resolva isso daí”. Calma, não estou dizendo que realmente Deus tenha um propósito para tudo. Mas será que não estamos fugindo da nossa responsabilidade como cristãos de carregarmos os fardos uns dos outros, de andarmos a segunda milha??

As palavras amorosas devem vir sempre acompanhadas por atos concretos de amor. Enquanto, pela filosofia grega, o amor é um sentimento metafísico; para a tradição judaica, o amor é algo muito mais concreto e palpável, dissociado esta perspectiva meramente transcendente. O amor é ação. O serviço cristão é a materialização do amor de Deus, serviço este a que somos convocados todos os dias. Pois todos os dias se renovam as misericórdias de Deus, não só pra você se aliviar e não ser mandado pro inferno. As misericórdias de Deus se renovam para uma nova oportunidade de você se negar a si mesmo e servir ao seu próximo.

“Nós tendemos a entender mal a Jesus quando Ele respondeu ao pai que duvidara se ele poderia ajudar ao seu filho. ‘Tudo é possível àquele que crê!’ Com muita facilidade acabamos pensando que isto nos confere vantagens. Trata-se do contrário: por Jesus crer de fato, lhe foi possível tudo (isto é: entregar sua vida na cruz por nós). Para nós isto significa que quem crer pode amar o inimigo, abrir mão do seu direito, andar a segunda milha, não pensar em si mesmo, dedicar-se ao outro… Este “tudo” não nos traz vantagens, mas incumbe de serviço!” (Martin Weingaertner)

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