Discussão cor-de-rosa

135697

Um carro rosa. Um sedan daqueles com desenho americano, de frente larga e tudo, muito mais larga do que o necessário. Ridiculamente rosa. Infelizmente, não é um rosa aceitável. Sempre achei que carros rosas deveriam ser no mínimo metálicos, aproveitando a situação e esbanjando o ápice do magenta — afinal, não tem como ser rosa e discreto, um carro rosa é pra ser notado —, mas a dona do sedan escolheu um rosa fosco e pálido. Eu acho que, se for pra ser notado, que seja o mais rosa de todos os rosas e não esse cor-de-rosa café com leite. Mas a dona do sedan discordaria de mim. Ele prefiriu o rosa café com leite.

O sedan rosa de desenho americano chega e estaciona mal, com a menor discrição possível. Não estaciona mal porque a motorista é mulher — mulheres no geral são motoristas mais prudentes e esforçadas que o gênero concorrente — estaciona mal para ser notada. Pura egotrip. Abafado pelas portas fechadas se ouve a batida forte e pesada do gangsta latino dos anos 90 Cypress Hill: “How I Could Just Kill A Man!”.

Naquele jogo de câmera em que a câmera acelera e depois diminui pra câmera lenta, a mulher, com aquele corpo de mulher branca e rica — magrela com jeito de anoréxica mas com a certeza de estar dentro dos padrões aceitáveis da moda — sai do carro. Ela veste rosa, totalmente rosa. Não seria figura de linguagem dizer que o mundo dessa mulher é todo cor-de-rosa.

Seguindo a mulher sai um cachorro, aquele pincher dos famosos: um cachorro caro que a moléstia, que, muito provavelmente, foi modificado geneticamente: sua existência é um desafio a Darwin e toda a seleção natural. Anda sobre quatro patas finíssimas e vem de fábrica com um latido estridente e irritante (se não fosse a interferência humana essa raça teria morrido no primeiro espécime; definitivamente o mais pacífico dos labradores teria engolido esse roedor canino pelo bem de todo o mundo). El perrito, veste polainas rosas, those fluffy ones, obviously.

Da porta do passageiro, e com o mesmo jogo de câmera da saída de sua esposa, sai o marido trajando, também, vestes cor de rosa. De novo. Sem nenhuma figura de linguagem, o mundo dessa mulher é todo cor-de-rosa mesmo.

Um negrinho magrelo observa a cena e não resiste, grita: boiola, com a força de todos os seus dois pulmões. O marido também não resiste, tira uma 22 rosa com o letreiro “killing for fun” (o letreiro poderia muito bem estar estampado na corrente de um rapper americano) e aponta na cara do negrinho magrelo, que se ajoelha assustado. O marido pergunta: uma bala na cabeça ou um pênis ereto, duro e enorme, sua boca? O negrinho magrelo nem titubeia respondendo que prefere o pênis e o marido logo retruca: Quem é mais boiola agora? De novo, o magrelo nem titubeia: Ninguém! Não é como se existisse um grau de boiolice. O marido estranha a atitude do magrelo e continua ouvindo: Um cara pode chupar um pau ou querer um pênis enorme penetrando em seu ânus pela pura curiosidade da experiência; pode até ser bailarino ou sair por aí vestido de rosa, como é seu caso, pelo mais puro do gosto pessoal, não por opção sexual. Uhm, suspira o marido. O que vai ditar se ele é homossexual ou não, não serão experiências isoladas — fruto de curiosidade — mas sua decisão de viver relacionamentos afetivos e sexuais com pessoas do mesmo sexo. Homossexualidade não é questão de experiência ou vontades, mas um estilo de vida. Uhm, interroga mais uma vez o marido que agora segura o revólver de forma desleixada como se segurasse um cigarro, Então você não acredita que a homossexualidade seja genética? Se é genética ou não, não sei, o negrinho se levanta, mas ela só é visível se for manifesta num estilo de vida; ninguém vê o armário que mantém a homossexualidade escondida, logo se não se vê o armário, não se vê a homossexualidade. Enquanto existir o armário, a heterossexualidade estará garantida, apesar de todas as piadas de mal gosto e as exigências do formalismo masculino, encerra o negrinho.

O marido levanta a cabeça lentamente. E lentamente sobe a arma e aponta novamente a arma na cabeça do negrinho magrelo. Nossa, todo esse discurso deixa minha reação ao seu xingamento a coisa mais ridícula desse mundo. Eu vou ter que te matar agora — deveria te matar duas vezes, afinal você me ridicularizou duas vezes, uma com um xingamento, outra com sua inteligência. Sabe?, eu sou o típico homem branco, aquele que não sabe lidar com suas frustrações e descarrega essas frustrações em escapes que não fazem muito sentido com força descomunal em pessoas inocentes que, mais pra frente, vão ser reconhecidas como culpadas (pois no fim, eu sempre me dou bem). Adeus, e obrigado pela conversa.

Enquanto gatilho era puxado, o negrinho magrelo com um ligeireza ímpar dá um tapa na parte inferior do 22 que dispara e acerta o pé do marido enquanto gira lentamente no ar e cai como uma pena na mão do negrinho. O negrinho engatilha e dá um tiro certeiro na cabeça do pincher genéticamente modificado.

A mulher corre intutilmente pra acudir o cachorro. O marido cor-de-rosa aos poucos se avermelha com o sangue do seu pé.

A imagem que ilustra esse post se chama “Marilyn Monroe” de Andy Warhol

Posted in Artigos and tagged , , .