“E em termos artísticos, cristãos tem mais problemas com a retratação de uma ação que com a ação em si”, afirma Haroldo Ipê

Casamento, jornalismo e maternidade viraram uma narrativa para o primeiro livro de Haroldo Ipê, um cristão que acaba de entrar no mundo das letras com o livro Cabreiro e Antonieta (Editora Fictícia).

 

Você é cristão e o livro começa com uma cena de sexo…

Pois é. Faço literatura genuinamente brasileira). Mas falando sério, justiça seja feita, nosso maior escritor brasileiro, Machado, nunca descreveu uma cena de sexo, então não colocaria isso como obrigação de um escritor brasileiro. Mas voltando pra tua pergunta, sempre me chamou atenção as cenas de sexo nos livros. Moacir Scliar, pra citar outra influência brasileira minha, sempre teve o sexo muito presente nos seus romances. Desde o começo, quando comecei a pensar essa história, via o começo com um momento bem masculino, aquele momento que a gente está resmungando alguma coisa pra nós mesmos, afirmando como a vida é ruim, e poucos minutos depois, nossa esposa ou companheira nos convence do contrário com algo que só as mulheres podem fazer. Achei que o sexo era um bom começo, e foi uma boa escolha mesmo.

Mas cristãos não tem um problema histórico com sexo?

Tem sim. Mas alguns não, quer dizer, acho que aqueles que realmente são cristãos, ou não tem problema ou estão a caminho de não ter. Sexo faz parte, todo mundo nasceu dele e não falar sobre ele ou fingir que fala focando na virgindade pré-matrimonial, pra mim, é algo que aumenta o problema. Não escrevi uma cena de sexo explícito, e os personagens ainda são casados, é algo que acontece em todo casamento saudável, não vejo porque isso pode ser um grande problema. Em termos de religião cristã acho que o fato de Cabreiro e Antonieta não terem um casamento na igreja antes de morarem juntos algo muito mais polêmico, apesar de estar dentro dos padrões do Antigo Testamento. O sexo nessa história está dentro de uma relação de compromisso, de uma relação amorosa, logo não seria um sexo pecaminoso.

E em termos artísticos, cristãos tem mais problemas com a retratação de uma ação que com a ação em si.

Como assim?

Existe um maior problema em descrever uma cena de sexo do que escrever ou falar sobre sexo. Existe mais problema em colocar um personagem com um cigarro ou um copo de cerveja na mão do que falar sobre bebida ou sobre cigarro. Existe no cristianismo uma noção meio propagandista, que qualquer cena é uma propaganda do ato, seja num livro, no cinema ou na TV. Quando você coloca uma cena de sexo ou um cigarro na cena isso é um escândalo porque, supostamente, você está induzindo as pessoas àquele ato. Na verdade, a arte não tem esse poder, são as pessoas que decidem sozinhas o que fazer ou o que não fazer. O problema não está bem no sexo, mas na ideia de que descrever uma cena de sexo induzirá as pessoas a fazer sexo. As coisas não são tão simples assim, é difícil convencer alguém a fazer alguma coisa que ela já não estava disposta a fazer antes. Mas cristãos são muito complicados nessas coisas mesmo. É bem difícil.

E essa noção propagandista não deveria te impedir de escrever essas coisas?

É pra isso que ela serve na verdade. É uma teologia do medo, pra que certos assuntos não entrem na pauta, pra que a conversa fique num nível raso, pra que o discurso seja sempre controlado, dentro das nossas “especialidades”. O que me faz escrever sobre certos assuntos é exatamente esse sentimento de “não toque aqui”, pra tentar desmontar essa fortaleza de areia de coisas que são parte da nossa vida, como o sexo, por exemplo. Não falar sobre certas coisas é alimentar um problema e muito desses problemas não são só do cristianismo. E sexo é um deles.

Mas com toda essa provocação você escreve somente para cristãos, eles são seu público-alvo?

Não tenho necessariamente um público-alvo, escrevo pra quem quiser ler. As vezes quando estou escrevendo penso que determinada situação ou assunto tem um aspecto mais mercadológico, mas não escrevo com esse intuito. Na verdade não consigo. Já tentei escrever algo pra vender, mas não tenho essa veia comercial, tenho dificuldade em sentir o aquilo que é mais comercial e já errei muito tentando agradar. Acaba que escrevo o que quero escrever do jeito que quero escrever já agrada bastante gente.

Então você é um estranho no ninho, não existem muito outros escritores cristãos com essa veia mais literária?

Vivos, eu não conheço. A literatura tem vários cristãos que ajudaram a moldá-la, Dante, Tolstoy, Chesterton, Swift, Milton são nomes que estão em qualquer cartilha de história da literatura, ou deveriam estar, ao menos. Mas parece que com o tempo os cristãos foram perdendo o toque. Depois de Tolkien e Lewis eu não consigo lembrar de algum cristão que teve um papel tão forte na literatura. É até irônico, porque o cristianismo é uma religião de escritos, além da Bíblia, tantos outros livros foram moldando, transformando e incomodando o cristianismo. É irônico como nos tempos atuais cristãos escrevam tão mal.

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