Uma sociedade religiosa, mas injusta
O ritualismo e a mecanicidade da religião sempre foram motivos de críticas dos profetas pré-exílicos. E a razão era muito simples. Na época dos profetas Oséias e Amós, Israel, o Reino do Norte, vivia um período de muita prosperidade. Com o vácuo deixado pelo declínio da Assíria ficou fácil para Jeroboão II retomar os territórios que Israel havia perdido.
Ora, com a expansão do território, havia mais terras cultiváveis, uma vez que os hebreus eram também um povo agrícola. Com mais terras cultiváveis houve um crescimento da produção de commodities, e, devido à excelente localização geográfica da Palestina o crescimento econômico foi esplêndido! Uma nova classe de comerciantes prosperou, o reino de Israel prosperou em virtude do aumento de impostos e o clero também prosperou, afinal eram mantidos pelo governo. Entretanto nem tudo eram flores, pois uma grande parcela de Israel não prosperou. Essa parcela era o povo, que passou a levar nas costas todo o peso do governo, da classe empresarial e religiosa.
Porém, a despeito da corrupção moral e social provocadas por essa prosperidade, a religiosidade e o ritualismo de Israel continuaram sendo cumpridos à risca. Os templos estavam cheios e os sacrifícios continuavam acontecendo. Contudo, dois homens dessa época não se deixaram ludibriar por essa religiosidade externa, que na verdade, estava apenas escondendo uma ética de amor ao próximo falida. Eles eram Amós e Oséias.
Vejam como Oséias dirige seus ataques para o governo e os religiosos de seu tempo comparando-os com uma armadilha mortal:
“Ouçam isto, sacerdotes! Atenção, israelitas! Escute, ó família real! Esta sentença é contra vocês: Vocês têm sido uma armadilha em Mispá, uma rede estendida sobre o monte Tabor.” (Oséias 5:1)
Oséias chega a comparar os sacerdotes com bandidos e assassinos quando diz: “Assim como os assaltantes ficam de emboscada à espera de um homem, assim fazem também os bandos de sacerdotes; eles assassinam na estrada de Siquém e cometem outros crimes vergonhosos” (Oséias 6:9)
Amós também não alivia a situação quando compara o luxo no qual viviam alguns em detrimento da miséria de outros. Acompanhe:
“Ouçam esta palavra, vocês, vacas de Basã que estão no monte de Samaria, vocês, que oprimem os pobres e esmagam os necessitados e dizem aos senhores deles: Tragam bebidas e vamos beber!” (Amós 4:1)
“Vocês acham que estão afastando o dia mau mas na verdade estão atraindo o reinado do terror. Vocês se deitam em camas de marfim e se espreguiçam em seus sofás. Comem os melhores cordeiros e os novilhos mais gordos. Dedilham em suas liras como Davi e improvisam em instrumentos musicais. Vocês bebem vinho em grandes taças e se ungem com os mais finos óleos, mas não se entristecem com a ruína de José.” (Amós 6:3-6)
Amós e Oséias enxergaram além dos meros rituais que apenas aliviavam uma consciência cauterizada. Para eles não valia absolutamente nada continuar com a prática religiosa se havia pessoas sendo oprimidas e esfoladas.
Observe a reação de Amós, descrevendo as palavras de Deus, com os rituais destituídos de justiça:
“Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas assembleias solenes. Mesmo que vocês me tragam holocaustos e ofertas de cereal, isso não me agradará. Mesmo que me tragam as melhores ofertas de comunhão, não darei a menor atenção a elas. Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras. Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene! “(Amós 5:21-24)
Enquanto os rituais estivessem acontecendo estaria tudo bem, pois, na mentalidade da época, Deus estaria satisfeito com os sacrifícios, e ninguém se importaria com a injustiça massacrante em todas as esferas da sociedade.
Marx e a alienação religiosa
Marx, em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, afirma o seguinte sobre a religião:
“A religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o Homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.”
Ora, é exatamente o que estava acontecendo em Israel! Enquanto o governo, a classe empresarial e o clero enriqueciam, os pobres eram oprimidos e esfolados. Para compensar e disfarçar esse sistema corrupto, a religião era usada para inverter a realidade. Incutiram na cabeça do povo que Deus estava satisfeito com os rituais, logo, não havia com o que se preocupar. A injustiça social não era um problema, conquanto Deus estivesse satisfeito.
Manipularam as pessoas por meio da ilusão religiosa, conforme o próprio Marx também afirma, pois enquanto o povo segue inebriado pelos efeitos dos rituais religiosos, seguem sendo explorados sem perceberem, por que Deus está contente com suas atitudes.
Isso nos traz à nossa realidade e a conclusão de que nada mudou. Vivemos uma época entre uma fé cristã que mais se parece com bruxaria e outra que mais se parece com festivais e espetáculos circenses. Shows, números especiais, exorcismos ao vivo, gritarias, pulos e danças desconexas, entretenimento de auditório e muitas outras coisas acontecem para deixar os membros das igrejas e não perceberem o caos social no qual nos encontramos.
Gastamos muito mais com a diversão religiosa do que com o amparo aos pobres, viúvas e órfãos. Preferimos travar guerras santas contra segmentos da sociedade em vez de ser um sinal visível do Reino de Deus.
Mas, enquanto estivermos frequentando os cultos, dando nosso dízimo, participando das programações promovidas, ouvindo os sermões, fazendo solos, participando dos corais e teatros, Deus estará se agradando do nosso culto, mesmo que no bairro à nossa volta hajam analfabetos, viúvas desassistidas, órfãos sem esperança ou pobres oprimidos.
Onde estão vocês Amós e Oséias?