Vento de Cícero

Era um belo dia, quer dizer, o mais próximo de um belo dia em uma cidade que, já havia tempo, sido tomada pela fina névoa conhecida carinhosamente como poluição. Esse templo ficava numa avenida muito movimentada, e, quando o famoso pregador parava seu discurso pra respirar ou pra enfatizar alguma coisa, se ouvia um barulho de algum motor qualquer — o barulho não necessariamente incomodava os ouvintes, pois não existia lugar na cidade em que o silêncio reinava, a cidade não estava só infestada pela fumaça, mas pela bela cacofonia maquinária e tecnológica do progresso.

A fama do pregador enchia o templo. Gente de todos os bairros tinham deixado seu tradicional programa de auditório pra ouvir aquela pregação que iria mudar suas vidas, ao menos era isso que dizia a propaganda. “Eu acho que vocês deviam abandonar aquelas coisas e aquelas pessoas que atrapalham a vida de vocês” disse o pregador. A plateia ouvia cada palavra sem piscar e quase sem respirar, pois esse pregador tinha um dom com as palavras. “Sabe aquelas pessoas que chegam até você, enchem tua vida, dizem que sempre vão estar ali e depois vão embora como se a presença dele não importasse. Aqueles que quando vão embora levam um pedaço do teu coração junto, aqueles que bagunçam toda a tua vida, mas nem se mexem pra ajudar a arrumar ou a reorganizar a bagunça que fizeram; mal desarrumam vão embora…” O pregador deu aquela parada dramática, para dar tempo pros membros da plateia lembrar de alguém que já tinha feito isso com os presentes. O pregador era um homem experiente, esse discurso funcionava em qualquer lugar, em todo o mundo existe alguém que foi machucado por outro alguém em algum momento da vida. O pregador continuou: “Eu acho que não vale a pena insistir nessas pessoas, essas pessoas só trazem destruição e fazem questão de ir embora quando as coisas apertam. Elas não são seus amigos, não te amam, só se aproveitam de você, nem se importam com seus sentimentos…”

Enquanto o pregador falava, no meio da plateia, um homem negro daqueles bem grandes, aqueles que não cabem na cadeira, e não é que eles não cabem por excesso de peso mas porque são grandes mesmo, esse homem enorme, que dificilmente passava sem ser notado, timidamente levanta a mão. O pregador permite a interrupção com grande simpatia: “Tem um irmãozinho que quer falar alguma coisa, será que dá pra levar o microfone até ele?” Uma mulher de terninho preto com o cabelo artificialmente liso anda apressadamente para entregar o microfone na proporcional mão daquele enorme homem.

Levantando, o homem revela seus mais de 2 metros de altura. “Pastor”, ele começa quase que hesitando sua fala, “e se o homem que fez toda essa bagunça foi Jesus?” Na última palavra da frase a voz do homem deu uma vacilada como se um choro quisesse se revelar naquele momento, suas pernas falharam no exato momento em a palavra Jesus saía por seus lábios, ele quase caiu, mas ficou em pé.

“Irmão”, disse o pregador gentilmente “Jesus nunca te abandona, ele…”

O homem interrompe o pregador e diz: “Mas então pra onde ele foi?” e dessa vez o choro não foi engolido, as lágrimas começam a se manifestar e tomam conta do rosto daquele homem enorme “Pastor, Jesus veio até mim e fez todo esse rebuliço que o senhor disse aí! Pastor, muita gente já me disse que Jesus nunca me abandona, mas porque ele não me responde? Se ele não me abandona, porque eu me sinto tão sozinho?”

Outras pessoas de terno preto vão em direção ao homem tirar o microfone da mão dele, mas a altura daquele homem enorme dificultava o processo de censura, “Pastor, Jesus anda junto contigo, não anda? Por favor pastor, pergunta pra Jesus quando ele vem me abraçar de novo? Quando ele vem lá em casa esquentar meu coração? Eu tô sofrendo, pastor… Meu coração tá dóendo…” Conseguiram tirar o microfone e o homem cai de joelhos e continua a súplica: “Pastor, me ajuda, tá doendo…” O belo tapete vermelho fica manchado com as lágrimas daquele homem, as súplicas desconcertantes de um homem enorme de joelhos pedindo consolo tomam conta do templo enquanto um dos pastores do local assume o microfone e tenta distrair a plateia enquanto o pregador fica parado, congelado observa aquele homem enorme aos prantos de joelhos jogado no chão suplicando por seu amigo Jesus que o tinha abandonado.

O pregador interrompe qualquer coisa que o pastor local dizia pra entreter a plateia e diz: “Irmão, fazem dez anos que saio pregando pelo país, fazem dez anos que não sei porque visito diferentes comunidades pregando a palavra do Senhor, Jesus não anda mais comigo, infelizmente não posso responder nenhuma das suas perguntas. Sei tanto de Jesus quanto você, me sinto tão sozinho como você…” confessou o pregador com toda a seriedade que um homem pode ter. A pausa  dessa vez foi sincera e não planejada como fazia normalmente, essa pausa foi necessária como última e inútil tentiva de engolir as lágrimas que já batiam à porta desde que a palavra Jesus saiu da boca daquele homem negro enorme. O rosto do pregador se derrama em choro e soluçando ele diz: “Irmão, faz tempo que procuro Jesus por todo lugar que passo, e hoje encontrei Jesus aos prantos de joelhos clamando com todo seu corpo e alma pelo carinho de Deus.” O pregador abandonou o microfone em cima do palco e vai até o homem prostrado no chão.

O homem enorme, que de joelhos tinha a altura do pregador, olhou no olho do pregador e um pequeno sorriso se esboça no rosto dos dois em meio a água que manchava suas feições.

O pregador olhando no olho daquele homem enorme disse: “Na minha imaginação, nunca pensei que Jesus podia ser tão bonito.” A frase ressoou de tal forma que tomou conta do lugar, os pastores que ainda tentavam distrair a plateia ficaram quietos, a cidade lá fora parou e se deixou levar pelo silêncio, só se ouvia o vento, e o vento, que belo vento, o vento soprou aquela bela canção.

Kyrie eleison

Posted in Artigos and tagged , , .