Deus não é um cristão

Conta-se a história de um bêbado que atravessou a rua e abordou um homem que estava na calçada, perguntando: “Me diz aí, qual é o outro lado da rua?” O homem, um tanto perplexo, respondeu: “Esse lado, é claro!” O bêbado disse: “Estranho. Quando estava do outro lado, me disseram que era aquele”. Descobrir qual é “o outro lado da rua” depende de onde estamos. Nossa perspectiva muda dependendo do nosso contexto e das coisas que nos ajudado a formar nossa opinião. A religião é uma dos mais poderosas influências formativas, ajudando-nos a determinar como e o que apreendemos sobre a realidade e como agimos em nosso próprio contexto.
Meu primeiro ponto parece extraordinariamente simples: a maneira e o lugar onde nascemos determina em grande parte a qual fé nós pertencemos. As chances são muito grandes de que alguém que nasceu no Paquistão seja muçulmano; os nascidos na Índia mais provavelmente serão hindus; xintoísta, se nascer no Japão, e cristão se nascer na Itália. Eu não sei qual conclusão significativa podemos chegar ao pensar sobre isso – talvez que não devamos sucumbir facilmente à tentação de fazer reivindicações de exclusividade e ter um monopólio dogmático da verdade de nossa fé particular. Você poderia facilmente ser um adepto da fé que procura agora denegrir, pelo simples fato de que você nasceu neste país e não em outro.
O segundo ponto é este: não insulte os membros de outras religiões, como muitas vezes acontece, por você ser cristão acaba sugerindo que os adeptos de outras crenças na verdade são cristãos, mesmo sem saber disso. Devemos reconhecê-los pelo que eles são e com suas crenças conscientemente estabelecidas. Devemos acolhê-los e respeitá-los, como são e andar com reverência no solo sagrado deles, tirando nossos sapatos, metafórica e literalmente. Devemos nos apegar tenazmente às nossas crenças particulares, não fingindo que todas as religiões são iguais, pois elas evidentemente não são a mesma coisa. Devemos estar dispostos a aprender uns com os outros, não alegando que somente nós possuímos toda a verdade e que de alguma forma explicamos completamente a Deus.
Devemos reconhecer com humildade e alegria que a realidade divina e sobrenatural de toda forma de culto, de uma maneira ou outra, transcende todas as nossas categorias de pensamento e imaginação. Isso ocorre porque o divino – independentemente da sua designação – é infinito e nós sempre seremos finitos, sem jamais compreendermos totalmente o divino. Portanto, devemos compartilhar todos os conhecimentos que possuímos e, ao mesmo tempo, estar dispostos a aprender, por exemplo, perspectivas sobre a vida espiritual que fazem parte das outras religiões. É interessante notar que a maioria das religiões têm um ponto de referência transcendente, um mysterium tremendum, que pode ser conhecido pois se dignou a revelar-se para a humanidade. A realidade transcendente é compassiva e tem sentimentos. Os seres humanos são criaturas da supra-realidade mundana atual, com um destino que anseia, de alguma forma, por uma vida eterna em estreita ligação com o divino, sem distinção entre a criatura e o criador, entre o divino e o humano, ou em uma intimidade maravilhosa que ainda mantém a distinção entre essas duas formas de realidade.
Quando lemos os clássicos de várias religiões no tocante à oração, meditação e misticismo, encontramos uma convergência substancial, e isso é algo que deveria nos alegrar. Nós já temos o suficiente para o que conspira para nos separar, vamos celebrar o que nos une, o que temos em comum.
Certamente é bom saber que Deus criou a todos (não apenas os cristãos) à sua imagem, investindo em todos nós um valor infinito, e que foi com toda a humanidade que Deus entrou em um relacionamento de aliança. Na aliança com Noé, Deus prometeu que não destruiria sua criação novamente com água. Certamente podemos nos alegrar de que a palavra eterna, o Logos de Deus, ilumina a todos – não apenas os cristãos – que vêm ao mundo. O que chamamos de Espírito de Deus não é propriedade dos cristãos, pois existia muito antes que houvesse cristãos, inspirando e nutrindo as mulheres e os homens nos caminhos da santidade, trazendo-os à fruição, o que cada um tem de melhor.
Não fazemos justiça nem honramos o nosso Deus, se quisermos, por exemplo, negar que Mahatma Gandhi foi uma alma verdadeiramente grande, um homem santo que andou com Deus. Nosso Deus seria muito pequeno se ele não fosse também o Deus de Gandhi: se Deus é um só, como acreditamos, então ele é o único Deus de todos os povos, quer o reconheçam como tal ou não. Deus não precisa de nós para protegê-lo. Muitos entre nós talvez tenham a necessidade de ver nossa noção de Deus aprofundada e ampliada. Costuma-se dizer, meio em tom de brincadeira, que Deus criou o homem à sua imagem e o homem devolveu o elogio, sobrecarregando Deus com seus próprios preconceitos, manias e peculiaridades temperamentais. Deus continua sendo Deus, quer tenha adoradores fiéis ou não.
Vamos continuar fazendo nossas reivindicações de Cristo como um ser único e o Salvador do mundo, na esperança que vivamos as nossas crenças de tal maneira que elas nos ajudem a honrar nossa fé de forma eficaz. Contudo, nossa conduta demasiadas vezes está em contradição com o que professamos. Devemos anunciar o Deus do amor, mas somos culpados, como cristãos, de muitas vezes semear ódio e desconfiança. Adoramos Aquele que chamamos de o Príncipe da Paz, e mesmo assim temos travado mais guerras do que gostaríamos de lembrar. Alegamos ser (como Igreja) uma lugar de comunhão, de compaixão, de cuidado e de partilha, mas muitas vezes santificamos sistemas sócio-políticos que contrariam essa ideia, onde os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres ficam cada vez mais pobres, parece que estamos santificando uma competitividade cruel e furiosa que só poderia ser apropriado na selva.
Desmond Tutu é bispo da Igreja Anglicana e vencedor do prêmio Nobel da Paz de 1984. Este texto faz parte de seu novo livro God Is Not A Christian: And Other Provocations.
Este texto foi retirado do PavaBlog, traduzido pela agência Pavanews e foi originalmente publicado no Huffing Post.
Normalmente eu não gosto postar texto dos outros, mas acredito que essa visão, a de que a graça de Deus não pertence somente a caixinha da religião cristã que inventamos, fundamental pra quebrar alguns conceitos errados que temos de Deus.
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