Há dias atrás, tive uma madrugada terrível. Minha casa não foi arrombada, nem tampouco pegou fogo. Acordei suando frio, com febre, fui ao banheiro sem a mínima necessidade, e sentado na privada fui assaltado por memórias um tanto terríveis. Sem entender aquilo tudo, simplesmente deixei aquele momento surtir o seu efeito. Memórias vergonhosas de todos os momentos em que não mostrei Cristo a quem um dia já me vira não só uma vez, mas repetidas vezes. Serviço sujo do diabo.
Em meio a um frio desgraçado debaixo dos meus pés, e as pupilas desconfortáveis com a luz do espelho, uma sessão de imagens de rostos que já vira na vida começou a passar pela minha mente aleatoriamente, sem eu fazer o mínimo esforço. É fato: existem alguns rostos que nossa memória guarda pro resto da vida, sem a gente pedir. E não falo de rostos dos nossos pais, nem dos nossos filhos. São rostos de pessoas que não temos intimidade, mas que vimos a vida inteira no nosso cotidiano, desde a senhorinha vendedora de pipoca da rua até o vendedor ambulante dos jogos de final de campeonato brasileiro.
Sentado ali, comecei a lembrar do tempo que corria maratona, e de uma mulher andarilha que sempre se fazia presente no meu trajeto. Maratonistas costumam repetir trajetórias quando correm na cidade, tanto quanto andarilhos, e assim foi também comigo: eu sempre passava por essa mulher. Muito magra, sem longos cabelos, sempre com um gorro fininho, e uma pequena sacola na mão que parecia não haver mais que miudezas ali dentro. Seu semblante era de um “tanto faz” irrevogável. Eu sempre passava por ela e pensava: “hoje vou diminuir o passo. Só caminhar ao seu lado quem sabe. Saber de onde vem, e para onde vai.” A memória do rosto dela parecia marretear o vidro que separa o olhar da minha mente do espaço físico do banheiro.
Além dela, lembrei de vários outros rostos que passavam por mim sempre nessa trajetória. Muitos deles, vendo minha dor física, sorriam para mim como se dissessem, “Vá em frente, não desista!” Ao longe, já desviavam de mim para que eu não precisasse desviar deles. O tempo passou, a vida mudou, hoje não corro mais, o bairro onde vivo não é mais aquele bairro. E eu jamais fiz nada daquilo que desejei ter feito com aquela mulher e com todas essas pessoas: parar para ouví-las e mostrar Jesus à elas. Nunca mais as vi… Sentado ali, no banheiro, cada rosto passou mais uma vez, lentamente, sorrindo, como num filme de 35mm em minha mente. E ali foi como se o diabo jogasse na minha cara o dossiê da minha própria indiferença.
Não consegui segurar as lágrimas e sem saber muito o que pensar, exclamei uma só oração: “Tem misericórida de mim Pai…” No exato instante, foi como se o próprio Deus intervisse: “Basta. Retira-te”. Depois disso, retornei ao quarto. A minha oração é que Deus possa ser o autor do dossiê das nossas vidas.Que nele haja fotos de todos aqueles que amamos. E que o diabo não tenha o mínimo direito no juízo final, de jogar na nossa cara os rostos que vimos a vida inteira, de gente que Ele amou, mas que nós nunca nos importamos de amá-las.