Construir Comunidades

Diante do que está acontecendo no Rio de Janeiro,  fiquei pensando o que realmente vale a pena enquanto igreja, enquanto indíviduo nesse contexto religioso em que estou inserido. Será que os valores que estou absorvendo estão realmente de acordo com o que Jesus gostaria?
O pastor Ed René, em seu livro Outra Espiritualidade, faz uma reflexão sobre o que realmente deveria ser uma igreja alicerçada na comunhão… uma comunidade construída sobre o monte.


CERTOS DIAS ME PUS A PENSAR NOS desafios com os quais a Igreja convive. Alistei pelo menos dez:
1) a tirania do mercado,
2) a ilusão do marketing,
3) a falência das instituições,
4) a matriz do neoliberalismo (individualismo),
5) as crises ideológica, social, econômica e de fé,
6) o relativismo moral,
7) o institucionalismo religioso,
8) o desenvolvimento científico e tecnológico,
9) a proliferação do espiritualismo e,
10) o vazio de significado.


A relevância da Igreja neste mundo implica necessariamente a construção de comunidades. Isto não é tão óbvio, pois a Igreja vive entre três paradigmas funcionas – e, dos três, o comunitário é o menos favorecido e mais negligenciado.
O primeiro paradigma é o carismático. A ênfase está na manipulação dos poderes espirituais visando a solução de problemas e o acesso ao conforto. O movimento da batalha espiritual – que inclui quebra de maldições, oração de renúncia, descarrego e outras barbaridades; os grandes ajuntamentos em auditórios onde há fogo santo no altar e unção sobre as massas; a ênfase nos fenômenos e seus modismos cíclicos, tipo disco ao contrário, alinhamento de planetas, dentes de ouro, unção do riso, unção do emagrecimento, cair no espírito-Espírito, revelações, visões e ministrações angelicais; as correntes e vigílias; as fogueiras santas e os votos. Outras tantas expressões ritualistas evidenciam que poucos estão dispostos à peregrinação do discipulado, preferindo intervenções instantâneas do mundo espiritual, resolvendo  questões como um passe de mágica, numa oração só, numa noite apenas, sob a benção do guru de plantão e a ministração de um espírito qualquer, supostamente sob comando do Espírito Santo.
O segundo paradigma é corporativo. A ênfase está na utilização de ferramentas e recursos da administração moderna. A promoção do planejamento estratégico e seu detalhamento: visão, missão, crenças e valores, estratégia, público-alvo; estrutura e gestão organizacional; programas, com projetos e atividades; desenvolvimento de lideranças cada vez menos espirituais e cada vez mais moldadas nos parâmetros empresariais têm sustentado a falaciosa cultura de que a igreja viva é necessariamente bem organizada, e vice-versa.
Evidentemente, ambos os paradigmas, carismático e corporativo, têm respaldo da Escritura Sagrada, legitimidade e relevância. Ninguém duvida que estejamos em luta sem tréguas contra os poderes das trevas e que a única possibilidade de êxito ministerial está na rendição ao Espírito Santo, que se manifesta através de todos, sempre e em todo lugar, para a edificação do Corpo de Cristo, multiplicando fenômenos e distribuindo ministrações – inclusive instantâneas.
Ninguém discordaria também que o acesso às ferramentas e aos recursos da administração moderna não significa que a igreja está querendo aprender com as empresas e organizações, mas que os gurus da administração extraíram da Bíblia seus principais conceitos e cases de liderança, de modo que a igreja está apenas e tão-somente resgatando um tesouro que é seu. Moisés, Neemias e Paulo são incomparáveis, e teriam lugar em qualquer tribuna de treinamento de executivos. Isso sem contar com o próprio Jesus.
Mas o fato é que apenas na dimensão comunitária a Igreja pode fazer frente aos desafios contemporâneos. É na vida de comunhão e na trilha dos relacionamentos de intimidade que vencemos a tirania do mercado e construímos  uma realidade que transcende
À ilusão do marketing religioso, onde o Evangelho não é tratado como produto, mas como poder de Deus para abençoar pessoas. É na vida de comunhão que superamos a falência das instituições, quer pelos vínculos afetivos que vão se formando, quer pela ação solidária que oferece ao povo uma alternativa de serviço e apoio em detrimento de um Estado falido e corrompido.
É na vida de comunhão que somos constantemente desafiados a sair de nossa zona de conforto individual  e nos colocar a caminho do encontro. É Na vida de comunhão que o Reino de Deus ganha densidade, e a agenda de justiça e fraternidade pode ser concretizada como profecia contra todas as propostas ideológicas de saúde social. É na vida de comunhão que se constrói a rede por meio da qual os pobres são supridos em suas faltas, os ricos encontram caminhos de doação que resultam em benefícios reais aos destinatários da oferta. É na vida de comunhão que a fé é alimentada, quer pelo constante encorajamento mútuo, quer pela possibilidade de suporte ao fraco, consolo ao desanimado, respostas aos questionadores e oportunidades aos que caíram.
É na vida de comunhão que encontramos alternativas de preservação ética além do comportamentalismo legalista e barato. É na vida de comunhão que desmascaramos o institucionalismo religioso, fazendo as pessoas ser valorizadas acima das agendas, dos programas e dos projetos. É na vida de comunhão que oferecemos o high touch como contraponto ao high tech, pois sabemos que “não sois máquinas, homens é que sois”. É na vida de comunhão que fazemos frente ao espiritualismo esotérico e ao misticismo desencarnado, fazendo pontes entre céus e Terra, uma vez que o contato com Deus há de ser, antes e depois de tudo, um contato com o próximo e o irmão. É na vida de comunhão que preenchemos o vazio de significado, pois a comunidade cristã, agência do Reino de Deus, resume em si uma proposta existencial na direção do outro e dos outros.
Imagino a Igreja não como uma alternativa para a sociedade, mas como a sociedade alternativa. O fenômeno das ONGs tem feito migrar para os setores mobilizados da sociedade civis muitos serviços que outrora eram privilégio do Estado. O voluntariado do Terceiro Setor responde hoje por boa parcela do atendimento às populações carentes, inclusive na manutenção financeira da assistência.
Esse paradigma é compatível – aliás, o mais compatível – com a realidade da vida cristã em comunhão, pois as comunidades cristãs são, ou deveriam ser, força de mobilização, agências de prestação de serviço solidário, ambientes de fraternidade, fóruns promotores de justiça, moldura para a jornada espiritual, locais onde tão importante quanto o lugar aonde se chega é o jeito como se vai e os companheiros no caminho.
Sim, é mais fácil ministrar por atacado, em auditórios superlotados, gerando a falsa impressão de êxito e eficácia. É mais fácil administrar coisas, programas, projetos, atividades, agendas, orçamentos. É mais fácil falar ao telefone com o ouvinte do outro lado do país e orar de uma vez com óleo sobre as cartas de remetentes anônimos. Difícil mesmo é colocar o pé na lama, ir ao encontro das pessoas, uma de cada vez, para ouvir suas histórias singulares, discernir seus mundos interiores trancados em chaves de defesa, trilhar o caminho desconhecido em busca de respostas que não estão prontas nos manuais de aconselhamento.
Difícil mesmo é conviver com as contradições dos outros, seus julgamentos injustos, suas neuroses projetadas, sua imaturidade emocional, sua confusão mental, sua ignorância espiritual e sua vaidade a toda prova. Difícil mesmo é abrir a casa em hospitalidade, repartir o pão, depositar uma oferta na conta corrente do irmão com nome, CIC, RG e dívidas. Difícil mesmo é exercitar a disciplina do encontro, da busca constante e de perdão. Difícil mesmo é ser gente em comunidade.
Difícil, mas fascinante. Difícil, mas relevante. Difícil, mas inocultável, pois quando a cidade está edificada, uma casa de cada vez, e cada uma iluminada, ninguém mais consegue calar a voz da profecia e da oferta da graça.

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Texto extraído do Livro Outra Espiritualidade, do pastor Ed René Kivitz, capítulo 16, páginas 81 a 84, mediante autorização prévia do autor.
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