O trecho abaixo é do escritor de ficção científica H.G. Wells, que escreveu livros como O Homem Invisível e A Máquina do Tempo. Não li nenhum deles, só li alguns trechos do livro Breve história do mundo (que se você quiser me dar de presente, ficarei imensamente grado!). Dizem que o cara é agnóstico, e deve ser mesmo, mas mesmo assim, o homem teve uma noção do evangelho que é incrível e extasiante.
Os judeus estavam persuadidos de que Deus, o único Deus do mundo inteiro, era um Deus justo – mas achavam também que fosse um Deus negociador, que fizera acerca deles uma barganha com seu patriarca Abraão (uma barganha na verdade muito favorável para eles), de alçá-los por fim à supremacia sobre a terra. Com horror e ódio eles ouviram Jesus varrendo para longe essas suas acalentadas seguranças. Deus, ensinava ele, não fazia barganhas; não havia povo escolhido nem favoritos no reino do céu. Deus era o pai amoroso de toda a vida, tão incapaz de demonstrar favoritismo quanto o universal sol.
Todos os homens eram irmãos – tanto os pecadores quanto os filhos amados – desse divino pai. Na parábola do bom samaritano Jesus lança seu escárnio contra nossa tendência natural a glorificar nossa própria gente e minimizar a virtude dos povos de outros credos e raças. Na parábola dos trabalhadores ele rejeita a pretensão obstinada dos judeus de possuírem um crédito especial diante de Deus. Todos que Deus acolhe em seu reino, ensinava ele, Deus serve da mesma forma; não há distinção no seu tratamento, porque não há medida para sua liberalidade. De todos, além disso – como dá testemunho a parábola dos talentos e reforça o episódio da moeda da viúva, – ele exige o absoluto máximo. Não há privilégios, não há abatimentos e não há desculpas no reino do céu.
Porém não era apenas o patriotismo tribal dos judeus que Jesus ultrajava. Os judeus eram um povo que valorizava intensamente a lealdade familiar, e Jesus queria que a estreiteza das restritas afeições familiares fosse levada de arrasto pela grande torrente do amor de Deus. Para os seus seguidores, “família” deveria ser o reino do céu inteiro.
Jesus não se contentava ainda em investir contra o patriotismo e contra os laços de família em nome da paternidade universal de Deus e da irmandade de toda a humanidade; fica claro que seu ensino condenava também todas as gradações do sistema econômico, toda a riqueza privada e todas as vantagens pessoais. Todos os homens pertenciam ao reino; todas as suas posses pertenciam ao reino; o modo de vida íntegro para todos os homens, o único modo de vida íntegro, era o serviço de Deus com tudo que temos, com tudo que somos – pelo que, vez após outra, Jesus denunciava as riquezas privadas e as reservas de qualquer vida privada.
Finalmente, em sua tremenda profetização desse reino que consistia em todos os homens unidos em Deus, Jesus reservava pouca paciência para com a integridade de barganha da religião formal. Uma porção significativa de suas palavras registradas nos evangelhos está dirigida contra a meticulosa observância de regras por parte dos seguidores da piedosa carreira.
H.G. Wells
Kyrie eleison
A imagem que ilustra esse post é de Giacomo Balla, artista italiano um dos fundadores do movimento de vanguarda Futurismo.