Alguma coisa sobre mim

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Pensei uns cinco minutos pra decidir o titulo. Testemunho soa muito “piegas”, parece aquele tipo de coisa que já fiz muito na vida: ir à frente na igreja e contar minha história destacando o quanto eu era podre e miserável e o quanto eu sou bom e santo agora. Minha história, ou biografia, soaria muito pretensioso. Na real, quem é que pode se interessar pela minha história de vida? Fiz alguma coisa de relevante, importante, ou digna de nota? Acho que não, então é melhor escrever ALGUMA coisa sobre mim mesmo. Qualquer coisa seria muito vago, então é melhor definir como alguma coisa.

Explico: talvez esse seja o testemunho de vida (não nos sentido que mencionei acima) mais realista que já tenha escrito.Nasci em família tradicionalmente cristã, meus avós maternos eram católicos. Daqueles cuja tradição era tão forte que até mesmo no casamento de sua filha, o meu avô não compareceu. Meus avós paternos , por sua vez, eram luteranos tradicionais. Cresci então indo dominicalmente em cultos luteranos, vez ou outra nas férias numa missa. Me acostumei com essa liturgia tradicional. Pra quem entende um pouco do assunto, cantar glória para mim tinha um significado diferente do que a música gospel contemporânea ensina. Apesar da mecanicidade, o culto tinha muito mais conteúdos e elementos do que os que eu vejo hoje. (Eita saudosismo!) Logo cedo conheci a teologia da libertação, não como teoria acadêmica, mas como prática de comunidade. Canções advindas desta “nova” teologia motivavam à igreja. Naturalmente nem todos concordavam com este rumo teológico. A preferência pelos pobres parecia significar que os ricos deveriam ser expulsos ou exterminados da face da terra. Muitos ricos deixaram a igreja nesta época. Arrisco dizer que não compreenderam nem teologia da libertação, muito menos o básico do cristianismo. Foi nos circulos de leitura popular da Bíblia, as novenas de Advento e Paixão que me familiarizei com a leitura Bíblica, e com as histórias de Jesus. Ainda hoje lembro de músicas como “Por um pedaço de pão”, “Utopia” e “Resistência”.

Na adolescência tive contato com o evangelicalismo. Apesar de toda uma história na tradição cristã, me converti. Hoje talvez diria que tomei consciência em um determinado momento de que eu cria em Deus e precisava dizer isto em público. Mas foi importante e marcante pra mim ter confessado o Credo Apostólico de forma pública no culto de confirmação de fé (equivalente luterano da crisma católica). Não foi só uma tradição, foi algo vivo e importante pra mim. A despeito da moral burguesa e conservadora do evangelicalismo vivi não tão santamente. Diriam que eu era crente Raimundo, um pé na igreja outro no mundo. Lembro de um amigo agnóstico, talvez meu melhor amigo em todo o tempo de escola. Quando me “converti”, contei pra ele como foi a leitura do Evangelho segundo Lucas. Era bom ser “Raimundo”, pois nunca quis converter meu amigo, nem sequer convidei ele pra ir na minha igreja. Mas sempre falei abertamente com ele sobre minhas “experiências” cristãs, e minhas impressões da leitura bíblica. Ele me respeitava, e eu também tinha respeito por ele.

Talvez pelo bullying sofrido na escola, percebi que na igreja eu tinha um local onde podia ser alguém. Na escola, pelo jeitão quieto, as notas altas, o interesse por computador, e tudo mais logo perdi meu nome. Me transformaram em “Nerd”, fui chamado assim durante todo o ensino médio. Na igreja eu tinha nome, e por ser o mais velho da turminha da molecada, algum respeito. Não demorou pra formarmos um grupelho de adolescentes e jovens. Logo eu assumiria a “liderança”. Aquele fenômeno típico de igreja pentecostal, onde o porteiro do prédio, que não tem nome é o pastor vestindo terno na igreja, se repetia comigo. Estava agora na Universidade, cursando Engenharia Elétrica. Ninguém podia crer que um moleque de 19 anos que aprontava todas nos trotes e vivia na mesa de truco e cervejadas de final de semana era presidente nacional da organização de jovens da Igreja Luterana e vivia pra lá e pra cá em viagens pelo Brasil afora. Era contraditória alguém que tinha uma agenda “mundana” tão proeminente conseguia ser também alguém tão ativo na igreja. Tem coisas que me envergonho dessa época, como os trotes na faculdade, ou a falta de seriedade nos estudos. Ou mesmo a politicagem na liderança da juventude da igreja. Não dá pra simplesmente dizer que era um tempo em que eu vivia no pecado, na lama, na desgraça e ponto final. Mas também não dá pra dizer que os meus erros eram coisa pequena e irrelevante. Flertei de perto com uma dependência de alcool, bebi excessivamente e constantemente. Por essa razão decidi parar completamente com o álcool. Por algum quis apagar estes fatos da minha história, por outro falei deles como se fossem um diabo que me perseguia. Hoje simplesmente penso neles como momentos difíceis que passei, que me fizeram mudar e ser quem sou hoje.

Sabe o que estraga na hora de você “dar um testemunho”? É essa necessidade tosca de ter que se parecer com um Agostinho de Hipona. Essa obrigação de mostrar que você É um bom convertido. Essa algema de ter que ser preto OU branco. Essa subserviência a um modelo de espiritualidade quadrado. Quanto mais pecador e nojento for (ou parecer) sua história passada, e quanto mais milagrosa, surpreendente for sua história de conversão, mais a igreja vai à loucura. Aí sim dirão “esse sim é crente!”. Já fiz isso, e já recebi aplausos por isto. Mas é ridículo, eu sei.

Mas não desprezo a experiência subjetiva com Deus. Nunca vi o céu se abrir ou grama brilhar, ou coisas desse tipo. Mas tenho clareza que a razão pra eu ter trocado a Engenharia pela Teologia tem algo a ver com o chamado de Deus. Quando na saída do culto uma senhora me parou e disse: “para com esse curso de engenharia e vai ser pastor”, isso me soou como um chamado. Resolvi experimentar, pedi ao pastor pra ajudar nas mensagens nos programas de jovens e nos estudos bíblicos. Aí vieram mais pessoas dizendo: “acho que você tem mais dom pra pastorear do que pra ser engenheiro”. Resolvi levar a sério esse chamado. Decidi por estudar teologia e me preparar para o ministério de tempo integral na Igreja Luterana.

Na Faculdade conheci de tudo, carismáticos, tradicionais e liberais. Conviver com todos, aprender a ouvir opiniões diferentes, e a dificuldade em ter que assumir partido. Esse negócio de não ter partido, de não assumir uma posição teológica, é no fundo boiolice teológica. Você não precisa ser um boçal, mas também não pode ficar só em cima do muro pra ir sempre conforme o time que tá ganhando. Ter posição é necessário e importante, o que é burrice é achar que só a sua posição é certa e boa.

Me casei durante o tempo de estudos. Foi uma excelente oportunidade de crescimento. Não queriamos ficar naquela pira de escolhi esperar ter uma casa, um carro, contas pagas, e bla bla bla pra poder casar. Foi um passo de fé. Não tínhamos grana suficiente, viviamos de mantenedores, uma bolsa de estudos e uma grana que ganhávamos trabalhando em igrejas no final de semana, e também pegamos um financiamento estudantil. Mas esse peso não nos assustou, nos uniu. Foi a melhor decisão, começar a vida à dois já falidos e com empréstimo pra pagar! Apesar disso nada nos faltou, nos formamos, e hoje podemos pagar o empréstimo sem precisar se estressar com isso.

Após a formatura ingressamos no ministério missionário em uma instituição missionária na Igreja Luterana. Fomos enviados à Timbó/SC, onde servimos por quase 4 anos. Foi um tempo magnifico, um tempo de transformar dois teólogos jovens e cheios de idéias em duas pessoas com o pé no chão. Que veem a realidade e tentam deixar Deus transformá-la à seu próprio modo. Não era simples pastorear uma igreja de tradição germânica, sendo jovem, não falando alemão, e tendo como colega de ministério alguém também jovem e como dizia o povo, um “brasileiro”. Arrisco dizer que demos a nossa contribuição à brasilidade deste pequeno reduto germânico em Santa Catarina. Não tenho raivo, nem rancor deles, nem mesmo quando ouvi opiniões racistas. Tenho misericórdia dos que pensam assim, e não tive medo de falar que é errado e que a mudança é necessária. Foi bom folear a Bíblia juntos e desfazer interpretações bíblicas excludentes e preconceituosas. Percebe que pra um idoso que passou metade da sua vida falando alemão, uma pregação em alemão lhe faz muito mais sentido do que a mesma em português. Me desfiz de preconceitos culturais. Cresci em experiência relacional e ministerial.

Assim como meu chamado, ou vocação para o pastorado, a vocação para docência aconteceu na comunidade. No começo eu era meio boçal, sentava junto com alguns jovens que estavam a fim de estudar algo mais sobre a Bíblia e a fé cristã e liamos meus textos: Trindade, Cristologia, hamartiologia, justificação, e por aí vai. Textos entupidos de termos hebraicos, gregos, citação de teológos e filósofos. Mas meus queridos amigos, parceiros nessa caminhada de ensino e aprendizagem me ensinaram que a tarefa de ensinar se começa no aprender. E aí aprendi junto com eles que não o ponto de partida não é o meu pressuposto, mas o conhecimento da vida deles. A este conhecimento acrescentávamos Bíblia, história e por último também teologia e filosofia. Me reunia com um músico profissional, um advogado e um farmacêutico pra estudar a Bíblia. Tempo maravilhoso! Ali nasceu a minha vocação pra docência. Ali aprendi que só escrever artigos teológicos não basta, urgente é responder as perguntas que as pessoas estão se fazendo, e fazê-las com amor, humildade, clareza e simplicidade, sem com isto ser simplório e besta. Aprendi a não ser dogmático, mesmo sendo um teólogo sistemático. Aprendi que eu não tenho a verdade última, apenas me relaciono com aquele que É a verdade.

Nossa caminhada como família mudou rápido, a Ana Luisa nasceu e 8 meses depois já estávamos na Alemanha pro doutorado. Agora quem pensa que é mil maravilhas, chique, e tudo de bom se engana. A sociedade de bem estar européia é algoz de si mesma. Promove um mundo onde o EU é essencial e onde o NÓS é inexistente. Quer dizer, o NÓS só entra na discussão quando por causa dele o EU sofre algum prejuízo. Imagine um cristianismo sem dimensão comunitária? Uma fé individualizada, compartimentalizada, e sem relevância qualquer no nível social? Bem-vindo a Europa: o sonho de consumo do brasileiro médio “chic”. Eu sei, a vida me presenteará com muito aprendizado aqui. Minha expectativa é contribuir aqui no Crentassos com um pouco do que tenho vivido e aprendido no velho continente. Escrevo textos de retrospectiva, pensando no que me aconteceu no Brasil, mas escrevo também pensando pra frente, no que podemos mudar, sonhar, ousar. As vezes sou técnico, um teólogo. As vezes relacional, um pastor. Quem sabe um dia amante, um poeta. Mas isto ainda está na fase do sonho, talvez até da utopia.

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