O dia em que a igreja virou cachaça

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Esse é o cristão evangélico brasileiro.

Nascido no Brasil, crescido num centro urbano. Alguns deles nasceram e cresceram numa comunidade cristã evangélica, outros entraram nela no decorrer da vida. Os que cresceram nela são filhos da última leva de imigrantes europeus ou fruto de alguma missão europeia ou americana que veio trazer os ensinamentos de um rabi da Galileia para os perdidos nas belas terras tupiniquins. Os que se converteram no decorrer da vida são filhos de católicos, praticantes ou não, que nunca se encontraram direito na grande organização que é a igreja católica ou simplesmente nunca compactuaram com algumas — eu disse algumas — das expressões católicas latinas que se distanciaram daquilo que o rabi da Galileia pregava enquanto andava entre nós.

Vários desses movimentos avivaram e se espalharam como formiga por toda a fértil terra brasileira. Como todo crescimento, no começo ele é vivo e cheio de amor pra dar, é como Romeu que não se importa com a inimizade da família Capuleto e está disposto a romper com tudo para que, por amor, o Romeu e Julieta nunca se separem.

Devidamente introduzidos, estamos aqui: no tempo contemporâneo.

Assim como Julieta, o cristão evangélico contemporâneo tem bebido algo que tem anestesiado seu ser e mantido ele em uma embriaguez profunda, a ponto de sua presença não fazer muita diferença por onde passa. O que causa é incomodo. Ele não está morto, mas também não dá pra se dizer que está vivo. Aqui não foi usado um sonífero que leva a todos a se convencerem de que já não existe vida naquele corpo, nosso veneno é um destilado mais fraco, porém, muito mais forte, de efeito muito mais prolongado, feito da mais pura igreja: igreja essa que foi fervida, preparada e só quando ficou grande o bastante foi destilada fazendo com que seu teor alcoólico nos embebedasse mais efetivamente que cachaça em homem de estômago fraco. Assim como Julieta, o cristão evangélico contemporâneo fica adormecido a ponto de parecer morto, mas não um morto cuja beleza ainda não chegou a deixar o corpo, um morto-vivo, quase um zumbi, um homem passivo e cordial, a espera do amado para ser acordado somente quando este voltar; porém, ao contrário do plano shakesperiano, a quase-morte ou a anestesia de sua noiva nunca foi um plano do amado e não foram poucas as vezes que o amado condenou fortemente sua noiva por não refletir e manifestar o amor vivo e ativo que esse amado ainda insiste em manter vivo.

Essa igreja destilada tem embriagado o cristão evangélico brasileiro com diferentes programas que ao invés de aprofundar o evangelho tem criado homens e mulheres que se preocupam mais com a aparência do que ser agente do reino de Deus — imitadores fiéis do rabi da Galileia. Ao invés de sujar nossos pés e calejar nossos joelhos temos bebido dessa cachaça que nos prende em diferentes cultos, grupos de oração, reunião da mulher, encontro do homem, escola dominical, culto da criança-menor, culto da criança-maior, culto jovem, culto do jovem adulto, culto dos encalhados, culto dos forever alone, culto do virgens com orgulho, culto de cura, culto da doença, culto dos milagres, culto da maldição, tanto culto que acaba sobrando pouco espaço para que esse pobre coitado possa sair por aí e testemunhar tudo aquilo de bom que Deus tem feito por nós.

Em alguns, essa embriaguez é tão profunda que até incomoda aqueles que o encontram; andam por aí como bêbado sem rumo, falando palavras tortas e emboladas que não tem nenhum significado fora do templo. O mais incômodo dessa embriaguez surge do único objetivo dela: trazer outros com ele para reabastecer a embriaguez com sua amada e destilada igreja.

A igreja, essa santa e imaculada sem defeito nem ruga, aquela construída com pedras vivas que tem como missão sinalizar o reino de Deus por onde quer que ela passe, tem reproduzido uma embriaguez social com suas próprias vestimentas, regras sociais, vocabulário e entretenimento especializado, igual ao mundo que ela, essa igreja destilada, tanto abomina.

O reino de Deus, disse o amado certa vez enquanto seus pés ainda pisavam na mesma terra que os nossos pés pisam agora, é como um grão de mostarda: pequeno, até insignificante, mas desse grão sai uma árvore gigantesca onde os pássaros vem descansar. A igreja não precisa ser destilada ou tratada, ela cresce simplesmente porque isso é inerente a ela, faz parte do seu DNA, não precisa de distrações, não precisa de programas, Deus lhe basta. Cabe àqueles que representam a noiva ter um pouco mais de fé naquilo que o amado sempre disse: desliguem o fogo, se livrem das panelas, joguem fora os alambiques e amem, pois, como disse o apóstolo, se não houver o amor, bem, não tem nada que possa fazer sentido.

Kyrie eleyson.

 

A imagem que ilustra esse post é do boêmio francês Touluse Lautrec, ilustrador e pintor do século XIX, e se chama «A la Mie

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